“Ainda Estou Aqui”: filme resgata a história da resistência contra a ditadura militar

Inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, deputado assassinado pela ditadura militar nos anos 70, “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles retrata a luta da família para garantir de justiça em pleno regime militar.

Helô Francisca e Clóvis Maia | Recife – PE


CULTURA – “Ainda Estou Aqui”, filme do diretor Walter Salles se passa no Rio de Janeiro da década de 1970, no auge da ditadura militar, e através das lentes nos conta a história da família Paiva, sete pessoas que moravam na orla carioca, mas que tiveram suas vidas drasticamente mudadas quando militares, invadem a casa, armados e sem um mandato se quer, e sequestram o pai da família com a justificativa de que ele precisaria prestar um depoimento de rotina.

O pai em questão se tratava de Rubens Paiva, deputado federal por São Paulo, eleito em 1962 e que teria sido cassado pelo Ato Institucional Número 1 em abril de 1964 após o parlamentar ter feito um discurso incisivo na Rádio Nacional denunciando o caráter golpista dos militares. Rubens Paiva  nunca mais foi visto novamente depois daquela noite.

Uma denúncia atual

“Ainda Estou Aqui” foi inspirado no livro de mesmo nome do escritor Marcelo Rubens Paiva lançado em 2015, filho do ex-deputado e engenheiro brasileiro Rubens Paiva e da advogada Eunice Paiva, retratando a luta dessa mãe, que decide voltar aos estudos e se formar em Direito para descobrir o paradeiro do marido e cobrar justiça.

O longa retrata não só a dor da família Paiva, mas também reflete a dor de milhares de famílias brasileiras que tiveram seus entes queridos sequestrados e mortos pelos militares e seus corpos desovados em valas comuns.

Eunice, interpretada brilhantemente em dois momentos da vida da personagem pelas atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, é também uma mostra da força das mulheres que ousaram enfrentar o regime, além de mostrar como os militares eram cruéis, não apenas com os presos políticos, através de tortura e assassinato, mas também com seus familiares, ao perpetuarem sistematicamente a violência psicológica, perseguição, negação e falsificação da lei, da ordem e da justiça, passando desde a promoção de mentiras na imprensa até pelo acesso a um simples pedaço de papel, como um atestado de óbito, coisa que só veio acontecer com Marcelo Rubens Paiva 40 anos depois de ser torturado, assassinado no 1° Exército do RJ e enterrado posteriormente, tendo seus restos mortais desenterrados pelos milicos e jogados ao mar em 1973 numa queima de arquivo.

Infelizmente todos os envolvidos diretamente no sequestro e morte do ex-deputado não foram condenados, muitos se quer foram denunciados, como o Brigadeiro João Paulo Burnier, golpista daquele primeiro de abril de 1964, que comandava a Base Aérea do Galeão no RJ e que também foi acusado pelos assassinatos de Stuart Angel e Anísio Teixeira, ambos em 1971, mas que morreu na reserva, em 2000 aos 80 anos, homenageado pelo exército pelos serviços prestados.

O importante papel da Comissão Nacional da Verdade

O autor do livro Marcelo Rubens Paiva fez questão de agradecer nas redes sociais a ex-presidente Dilma Rousseff pela criação  e a importância da Comissão da Verdade. Segundo ele,  nem o livro nem o filme existiriam sem a atuação da comissão e da presidente:

“Tenha dito! Por conta da Comissão da Verdade, tive elementos para escrever o livro “Ainda Estou Aqui”, e agora temos esse filme deslumbrante. E Dilma pagou um preço alto pelo necessário resgate da memória.”

Criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade foi um marco histórico em nosso país, tendo finalizado seus trabalhos com um relatório final contendo 29 recomendações para as autoridades nacionais e apesar de ter sido muito tímida se comparada ao que ocorreu na Argentina, retratada também num filme (“Argentina, 1985” de 2022), o trabalho e a criação da CNV foi fundamental para o país revisitar seu passado recente, inclusive sendo esses um dos motivos principais para o golpe de 2016 sofrido por Dilma Rousseff, tendo no caso Rubens Paiva um dos mais emblemáticos.

Um filme necessário

Dirigido por Walter Salles, que tem em seu currículo obras como Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2001) e “Diários de Motocicleta” (2004) o filme Ainda Estou Aqui foi anunciado como concorrente ao Óscar em 2025, além de ter sido premiado no Festival de Veneza desse ano pelo melhor roteiro. A extrema-direita, claro, tratou de fazer uma campanha de boicote nas redes sociais, que se reverteu em mais de R$8,6 milhões de bilheteria no Brasil nos 4 primeiros dias e exibição, o que é por si só uma marca histórica no cinema nacional, tão inviabilizado dentro do circuito comercial de cinema no país.

Quando esse artigo foi fechado, mais de meio milhão de brasileiros já tinham ido ver o filme nos cinemas, que contou com momentos marcantes como a reabertura do histórico Cine São Luiz, no Recife, que reabriu suas portas depois de dois anos fechado e contou uma exibição gratuita do filme com a presença do diretor no início de novembro.

Mais do que reforçar a trilha sonora impecável, a boa montagem do Rio de Janeiro dos anos 70, a direção minimalista e delicada do diretor e uma fotografia e edição que garante uma imersão nesse drama realístico de nosso passado recente, o filme Ainda Estou Aqui coloca o dedo na ferida de quem insiste em não querer acertar as contas com o passado, exige a reparação histórica aos indivíduos atingidos pelas duas décadas de uma ditadura sanguinária e violenta e acende também o alerta para o perigo que ronda nossa sociedade por parte daqueles que, pela impunidade, ainda alimentam projetos golpistas como vimos recentemente no 8 de janeiro de 2023 e suas consequências. Por exemplo, o episódio recente do terrorista que se explodiu em Brasília no último 13 de novembro.

Como um lembrete para todos nós, o título do filme ressoa quando saímos do cinema e nos impele para luta: ainda estamos aqui.

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