Carnaval: Costureiro trabalha das 9h até o corpo aguentar – 28/02/2025 – Cotidiano


Quando os holofotes iluminarem a Marquês de Sapucaí na sexta-feira de Carnaval, no Rio de Janeiro, alegorias e fantasias das escolas da Série Ouro encantarão o público no Sambódromo, com ingressos esgotados para os desfiles.

Mas os holofotes não mostram as condições precárias e insalubres enfrentadas por milhares de trabalhadores do Carnaval da Série Ouro, a segunda divisão do Carnaval carioca, para as quais o recente incêndio em uma fábrica de fantasia na zona norte do Rio chamou atenção.

O MPT (Ministério Público do Trabalho) está apurando o episódio e os “indícios de trabalho degradante” no local.

“Quem sustenta eles lá em cima somos nós aqui embaixo”, diz à BBC News Brasil o aderecista Milton (nome fictício), que trabalha há dez anos no setor.

“Sabemos que o governo repassa um bom dinheiro para o Carnaval. Nós somos a parte baixa da pirâmide e não conseguimos absorver nada disso. Mas precisamos trabalhar”, afirmou, pedindo para não ser identificado.

Milton dava os acertos finais um carro alegórico da Série Ouro na tarde da última segunda-feira, suado e com os tênis calçados pela metade, os calcanhares empoeirados para fora, cercado de cabos elétricos e restos de material no chão. Ele pega no serviço às 9h e diz ficar “até o corpo aguentar”.

“As condições são muito ruins. Aqui não tem bombeiro, segurança, não tem nada. A gente vive pela sorte. A gente gosta do que faz, mas está aqui pelo dinheiro, para levar o pão de cada dia para casa. Daqui sai o meu dinheiro de aluguel. É temporário? É. Mas estou desempregado e é o que tem para trabalhar honestamente”, afirma.

A sazonalidade do Carnaval garante seu aluguel por pelo menos mais alguns meses após a festa.

Perguntado quanto ganha, Milton abaixa a cabeça e sussurra–”você não vai acreditar.”

Como aderecista, diz receber R$ 700 por quinzena da escola, sem incluir vale-transporte nem refeição. Isso para trabalhar de segunda a sábado. São R$ 58,33 por dia. Para conseguir economizar, ele trabalha dobrado. Depois de terminar a jornada nesta escola, às 20h, começa o turno em outro barracão na vizinhança, onde recebe o mesmo valor por quinzena para trabalhar, madrugada adentro.

Ter teto já é vantagem

A reportagem da BBC News Brasil visitou diversos barracões de escolas da Série Ouro, o antigo grupo de Acesso, na região portuária do Rio, na Gamboa, improvisados em prédios abandonados ou terrenos a céu aberto.

Os problemas relatados por trabalhadores incluem a presença de ratos, gambás, mosquitos e morcegos, além de casos de insolação por longas horas de trabalho com o sol a pino.

Na movimentada Via Binário, o esqueleto de concreto de um antigo galpão abriga dois barracões lado a lado, cujas fachadas, vazadas para a rua, foram fechadas com portas de ferro grafitadas. Entre os problemas enfrentados ali estão infiltração que causa mofo no teto e goteiras sobre as alegorias quando chove; falta de janelas, ventilação e iluminação precária; e sujeira e muito calor.

Um dos barracões na via é da Unidos do Porto da Pedra, escola do município de São Gonçalo. Ali, o movimento de trabalhadores era pequeno na última segunda-feira, os carros alegóricos quase prontos para o desfile deste sábado.

“O Grupo Especial seria o paraíso, e a Série Ouro é o purgatório”, resume o carnavalesco Mauro Quintaes, da Porto da Pedra.

“É da Série Ouro que vai sair a escola que vai desfilar no grupo Especial no ano seguinte. Ela precisa de um mínimo de estrutura para ascender, mas às vezes ascende sem nenhuma.”

Quintaes tem quarenta anos de experiência no Carnaval, em escolas das duas divisões.

“Tenho sorte que meu espaço no Porto da Pedra é coberto, tem estrutura, banheiros. Mas há escolas fazendo o Carnaval no tempo, em terrenos baldios, à mercê da chuva. É muito sacrificante.”

Nessas condições, diz, higiene e segurança do trabalho também são prejudicados. A remuneração dos trabalhadores também diminui bastante do Grupo Especial para a Série Ouro, porque as escolas têm muito menos recursos.

Essa realidade convive lado a lado com a Cidade do Samba, inaugurada em 2006 na Gamboa para abrigar as escolas da primeira divisão do Carnaval, com galpões enormes e bem-estruturados, subdivididos para as diversas etapas de confecção de carros, alegorias, fantasias. O abismo entre os dois mundos, na descrição de um trabalhador da Série Ouro que não quis se identificar, é um “Grand Cânion”.

Cidade do Samba 2

O barracão da Inocentes de Belford Roxo fica logo ao lado do da Porto da Pedra, no mesmo esqueleto de concreto. Ao atender a reportagem na porta de ferro na entrada, uma nuvem de purpurina de repente parecia envolver o carnavalesco Cristiano Bara–mas era poeira vindo da rua, as partículas iluminadas pelo sol quente da tarde.

Bara, assim como outros carnavalescos ouvidos pela BBC News Brasil, acompanha com entusiasmo as notícias sobre a construção da Cidade do Samba 2, que será batizada de Fábrica do Samba Rosa Magalhães.

Antiga promessa da prefeitura do Rio, o projeto finalmente teve sua pedra fundamental colocada no ano passado na antiga estação Leopoldina, na região central do Rio.

Bara, que neste ano está fazendo o seu 36º Carnaval, estava na cerimônia de lançamento, e saúda a iniciativa do prefeito Eduardo Paes. O espaço abrigará 14 galpões para as escolas da Série Ouro, e tem entrega prevista para 2027.

“Esse espaço vai melhorar muito o processo de criação e de construção do Carnaval da Série Ouro. Nossa estrutura não é boa para a produzir esse espetáculo tão grandioso que o mundo inteiro conhece”, dizia Bara enquanto colava fitas douradas em volta de conchas de búzios artificiais, na luz fria e fraca dentro do barracão.

“O Carnaval movimenta muito a economia. Fortalecer a Série Ouro é como botar mais fermento no bolo. Vamos vender mais ingressos, fazer alegorias maiores e gerar mais renda, emprego e bem-estar para as pessoas. A gente precisa muito desse espaço.”

O carnavalesco Marcus Paulo, da Estácio de Sá, afirma que, enquanto não sai a “muito tardia” Cidade do Samba 2, os profissionais da Série Ouro encontram “muitas dificuldades”. Ele também se considera sortudo por ter um barracão com teto e banheiro. Já vivenciou os extremos, tanto na Cidade do Samba quanto em espaços mais precários.

“Já trabalhei em escolas com condições horríveis. Espaços invadidos, cedidos, insalubres, sem banheiro nem instalação. Mas sempre com a cobrança de entregar desfiles de excelência no maior espetáculo a céu aberto na terra”, relata.

“O principal material para produzir esse espetáculo somos nós, as pessoas. Ele não pode existir em detrimento do material humano”, diz Paulo.

Assim como as escolas do Grupo Especial, as da Série Ouro competem no Sambódromo, onde desfilam na sexta e sábado de Carnaval. A vencedora na categoria “sobe”, ganhando uma disputada vaga no Grupo Especial no ano seguinte (o que explica o antigo nome, Grupo de Acesso).

De acordo com a Riotur, a Empresa de Turismo do Município do Rio, para o Carnaval de 2025, a prefeitura repassou R$ 2,15 milhões para cada escola do grupo Especial. Já as da Série Ouro receberam R$ 925 mil cada.

Tragédia anunciada

No dia 12 de fevereiro, o incêndio em uma fábrica de fantasias escancarou a precariedade da cadeia produtiva do Carnaval do Rio.

O fogo na Maximus Confecções, em Ramos, que produzia fantasias encomendas por três escolas da Série Ouro–a Império Serrano, Unidos da Ponte e Unidos de Bangu–deixou 21 funcionários feridos e causou a morte de um deles, Rodrigo de Oliveira.

O desespero das pessoas presas no prédio, tentando escapar por estreitos basculantes nas janelas esfumaçadas, comoveu o país. O espaço funcionava sem alvará do Corpo de Bombeiros.

O caso trouxe à tona uma realidade de jornadas de trabalho longas e precárias, com arranjos informais.

O MPT instaurou um inquérito para apurar as condições laborais na fábrica e relatos de que havia “trabalhadores que dormiam no local, inclusive adolescentes, havendo indícios de trabalho degradante”, como o órgão afirmou em nota.

“É vergonhoso a festa que apresenta o Rio de Janeiro e o Brasil ao planeta ser forjada na exploração de uma mão de obra mal remunerada, sem direitos, condições de saúde nem segurança no trabalho”, escreveu a colunista Flávia Oliveira no jornal O Globo.

As três escolas que perderam as fantasias no incêndio não quiseram conceder entrevistas para a reportagem. Em notas, afirmaram lamentar profundamente o incêndio e estar “focados em garantir a segurança de todos os envolvidos neste acidente”.

A Liga RJ, que representa a Série Ouro, também negou entrevista. Em nota, expressou solidariedade às agremiações atingidas, prometeu apoio às pessoas feridas no incidente e afirmou que a Maximus “desempenha um papel fundamental no fornecimento de materiais para as escolas de samba”. Desde o incêndio, a confecção não se pronunciou.

Motor da economia

Em 2024, o Carnaval movimentou R$ 5 bilhões na economia no Rio, gerando cerca de R$ 200 milhões em arrecadação de ISS pelos serviços ligados à festa, de acordo com o Carnaval de Dados, relatório anual da prefeitura que levanta números do evento.

“As pessoas adoram arrotar que o Carnaval é o maior espetáculo da terra, mas a realidade é que ele ainda é feito de forma absolutamente mambembe e sem segurança para os seus trabalhadores”, diz o jornalista e pesquisador de Carnaval Fábio Fabato.

O Carnaval do Rio já sofreu ao menos outros sete incêndios de 1988 para cá, afetando tanto escolas do Grupo Especial quanto da Série Ouro.

Para Fabato, o episódio mais recente não surpreende porque a indústria do Carnaval não se profissionalizou–e quem sofre são os trabalhadores. A pandemia foi um exemplo da falta de proteção à categoria.

“As pessoas ficaram desassistidas e uma grande turma chegou a passar fome. Essa cadeia industrial é real, mas ainda não tem acesso a carteira assinada, seguridade social, um abraço de verdade aos trabalhadores”, afirma.

Para ele, o governo precisa apoiar o Carnaval com mais consistência e previsibilidade. As escolas frequentemente se queixam de receber subvenções em cima da hora, fazendo com que o trabalho se acumule nas semanas antes do desfile. Por outro lado, afirma Fabato, as autoridades também precisam exigir contrapartidas na aplicação desses repasses.

“O poder público tem que cobrar transparência das escolas na aplicação desses recursos e um abraço aos trabalhadores. As ligas também precisam ser cobradas. Para onde está indo o dinheiro que recebem da venda de ingressos, e com toda a camarotização da avenida?”, questiona.

De acordo com a Riotur, as escolas de samba fazem uma prestação de contas dos repasses, mas no caso das Séries Ouro, Prata e Bronze–respectivamente, a segunda, terceira e quarta divisões do Carnaval do Rio–isso é feito diretamente com as ligas responsáveis por cada grupo, que fazem a distribuição do repasse para as agremiações.

O órgão informa ainda que o processo de liberação dos repasses da prefeitura depende da documentação enviada por cada escola. “Com isso, o fluxo de pagamento pode variar, já que esse repasse só ocorre após a análise e aprovação da documentação específica de cada agremiação e, a partir daí, são feitas as publicações no Diário Oficial”, explica a Riotur.

Após o incêndio, o prefeito Eduardo Paes (PSD) anunciou o repasse de mais R$ 400 mil a cada uma das três escolas afetadas–que não poderão ser rebaixadas neste Carnaval. Afirmou ainda que levaria adiante uma proposta para exigir que as escolas respeitem direitos trabalhistas e segurança de trabalho como contrapartida para a subvenção pública. O governador Claudio Castro também determinou um patrocínio adicional à Série Ouro, no valor de R$ 3 milhões.

Ao visitar os escombros da fábrica no dia do incêndio, Paes destacou a importância da construção da Cidade do Samba 2 como uma “necessidade” para assegurar espaços de trabalho adequados às escolas.

“A gente vai vendo essas escolas espalhadas por aí, sem saber quantos lugares podem ser parecidos com esse nesse exato momento”, afirmou à imprensa, alegando que nenhum órgão “vai conseguir fiscalizar tudo”. Paes falou em “punição gravíssima” após a apuração de responsabilidades.

Contratos ‘de boca’

Às vésperas do Carnaval, os barracões visitados pela BBC News Brasil evidenciavam como a cadeia produtiva das escolas de samba está distante de padrões de segurança estruturas adequadas ao trabalho presentes em outras indústrias.

Equipamentos de proteção individual, rotas de fuga, uniformes, refeitórios, bebedouros, ou mesmo contratos de trabalho, não fazem parte daquela realidade.

Na segunda-feira, em um terreno a céu aberto com vista para a monumental Cidade do Samba logo do outro lado da rua, trabalhadores faziam os acertos finais nas alegorias de duas escolas que dividem o mesmo espaço, uma da Série Ouro, outra da Série Prata.

Esta última é a terceira divisão do Carnaval do Rio, que dá acesso à Série Ouro e tem ainda menos recursos, desfilando na Estrada Intendente Magalhães, na zona norte.

Na falta de um teto, as duas escolas usam lonas para cobrir os carros alegóricos quando há ameaça de chuva. Já para o sol escaldante das últimas, não havia remédio.

“Fazemos isso por amor ao Carnaval, mas não é fácil enfrentar essas adversidades. Não é para todo mundo”, relatou Carlos (nome fictício) enquanto comia seu almoço segurando uma quentinha de alumínio à sombra de um carro alegórico.

Ele trabalha como aderecista no Carnaval desde 2008, por empreitada, em contratos sempre firmados “de boca”. Afirma nunca ter tido problemas, mas já soube de outros empreiteiros que subcontrataram funcionários e deixaram de pagá-los. Pragas como ratos e gambás são comuns por ali, ele diz, e uma das alegorias virou casa de morcegos.

A Tradição, uma das duas escolas que divide o terreno, subiu da Série Prata para a Ouro, onde desfila neste ano pela primeira vez após uma década na terceira divisão.

“A gente se vira como pode”, diz a presidente da agremiação, Rafaela Nascimento.

“Geralmente a verba da prefeitura vem em janeiro, e isso atrapalha muito porque temos tem que correr contra o tempo. Não há como fazer milagre de janeiro para fevereiro a não ser trabalhando em dois turnos”, afirma ela, que prefere ter duas equipes se revezando por dia para evitar jornadas muito pesadas. Ela aluga um outro espaço para o ateliê de costura da escola, este coberto.

“A Cidade do Samba 2 vai ser muito importante para nós, porque todos (as escolas) vão estar de igual para igual, e porque vai dar mais dignidade para os trabalhadores”, afirma Nascimento.

O novo espaço beneficiará a ampla gama de profissionais que constroem o Carnaval, do barracão para o mundo– borracheiros, mecânicos, ferreiros, carpinteiros, costureiras, escultores, pintores, aderecistas, iluminadores.

“A maioria das pessoas que trabalha no Carnaval sai do ramo assim que consegue um trabalho com carteira assinada. Já perdemos muita gente de talento”, lamenta Carlos. “Todo mundo ganha com o Carnaval. O problema é que ninguém quer dividir.”



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