Um guarani faz sua leitura de ‘O Guarani’ – 28/02/2025 – Txai Suruí


A ópera ‘O Guarani’ esteve em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo e recebeu algumas críticas. Logo perguntei ao guarani Karai Djekupe qual era sua visão sobre a obra:

“Não conhecia e me pergunto como um colonizador pôde se tornar tão famoso com uma história que distorce a vivência do meu povo.

O espetáculo, embora ecoe uma estética grandiosa, traz à tona um olhar colonizador que não representa a realidade dos povos indígenas, especialmente a dos guaranis. Termos como ‘tribo’ e ‘índios’ são pejorativos, não fazendo jus à complexidade cultural e social das nações indígenas. A peça perpetua uma narrativa que normaliza a imposição de uma cultura sobre a outra.

Em uma cena, o guarani é catequizado, como se sua identidade estivesse sendo usurpada. Por outro lado, a cena onde o líder espiritual guarani realiza o batismo conforme nossas tradições é um momento de grande importância. Essa representação respeitou a espiritualidade do povo guarani e incorporou nossas práticas de maneira respeitosa, exaltando nossas crenças e valores.

A crítica à participação indígena na ópera revela uma falta de compreensão sobre a realidade dos guaranis e a complexidade de nossa cultura. O povo guarani existe e nunca foi convidado a participar da construção de sua própria narrativa. A ignorância do não indígena perpetua uma visão distorcida, ignorando o sofrimento causado pela colonização.

As cantigas guaranis são milenares e representam a memória de meu povo. Os instrumentos violão e rabeca surgiram em um contexto de trocas culturais, assim como o europeu também aprendeu com os indígenas. Criticar nossas músicas ou tentar desmerecer nosso povo por utilizá-los é um reflexo da ignorância colonial.

O povo aimoré, representado, é um exemplo de como a história muitas vezes apaga realidades complexas.

Assim como os nós, enfrentaram processos de colonização que resultaram em sua marginalização e, em muitos casos, em sua extinção. A narrativa da ópera não menciona a riqueza cultural e as lutas desses povos, mas sim se concentra em uma visão romantizada que favorece a perspectiva do colonizador”.

A presença guarani na peça é essencial, pois somos os verdadeiros portadores de uma história que merece ser contada com dignidade e respeito. O espetáculo deveria ter se esforçado para não apenas incluir mas exaltar a voz e a perspectiva dos guaranis, para que nossas narrativas e experiências fossem apresentadas de maneira autêntica.

“O Guarani”, embora reconhecido como uma obra importante no contexto da ópera brasileira, revela-se uma representação problemática que não faz jus ao povo guarani nem aos povos indígenas em geral. É fundamental que continuemos a questionar e criticar tais narrativas, buscando sempre uma representação que respeite e valorize a diversidade cultural e histórica dos povos originários.

Por fim, é importante notar que a peça, por ter direitos autorais, não pode sofrer alterações, e as falas pejorativas se mantiveram. No entanto, a presença guarani trouxe reflexões importantes a serem analisadas; e até mesmo as críticas a isso revelam um desprezo pela cultura e resistência dos povos indígenas, que persistem até os dias atuais.


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