Cidade brinca de cobrir rosto em folia no interior de PE – 03/03/2025 – Cotidiano


Na festa da carne, mostrar o rosto é pecado. Ao contrário do que acontece nas festividades carnavalescas Brasil afora, em um município do agreste de Pernambuco a tradição prega pelo anonimato. As máscaras e as vestimentas brilhantes fazem dos papangus algo inédito no Brasil. Nessa brincadeira, quem tem a cara exibida é a mulher do padre.

Estamos em Bezerros, cidade com cerca de 62 mil habitantes localizada a pouco mais de 100 km da capital, Recife. Aqui é a terra dos papangus, personagens que surgiram no século 19 como um tipo de crítica de negros escravizados aos banquetes da elite, promovidos pelos senhores de engenho da cana-de-açúcar. A partir dos anos 1990, a manifestação passou a ganhar contornos de brincadeira, tornando-se símbolo do Carnaval.

Mesmo com um calor de sensação térmica na casa dos 40ºC, as ruas do centro da cidade ficam tomadas de gente, agraciada com muito brilho e, é claro, gente mascarada e fantasiada. Até o fim do Carnaval, cerca de 600 mil pessoas devem acompanhar os cortejos dos papangus.

O nome papangus, a propósito, vem de “papa-angu”. Foi assim que essas pessoas mascaradas passaram a ser chamadas ainda no século 19, quando, trajadas de fantasias rudimentares, saíam pelas ruas brincando. Batiam de porta em porta pedindo angu de milho, ou seja, de fubá, aos bezerrenses. As crianças trataram logo de colocar um apelido nessa turma: “Lá vem os papa-angu”.

Pronto! De “papa-angu” para papangus foi só um pulinho… de Carnaval.

“Na época da escravatura, os negros se fantasiavam, cobriam partes do corpo, sobretudo o rosto, como uma crítica a esses banquetes da elite. Se disfarçaram para não serem identificados e não sofrerem nenhum tipo de represália”, explica Eudes Mateus, 28, secretário de Turismo e Cultura do município.

“Sempre de forma bastante rústica, essas manifestações ocorreram em outros pontos do Nordeste. Aqui em Bezerros, contudo, elas foram se aprimorando, se moldando ao decorrer do tempo.”

Ao todo, aproximadamente mil papangus devem desfilar pela cidade nestes dias de Carnaval. Bezerros criou ainda seis polos de folia que passeiam do forró ao frevo, sem abrir mão do samba e do brega. Ao menos 300 artistas, entre músicos e maestros de orquestras locais, ajudam a embalar o cortejo dos mascarados.

O Carnaval do Papangu, como é chamado, já é reconhecido pelo estado como o terceiro maior de Pernambuco, atrás apenas do de Recife e Olinda. De acordo com o secretário Mateus, o evento consumiu investimento na ordem de R$ 6 milhões, divididos entre os governos federal, estadual e municipal, além de patrocínios oriundos da iniciativa privada.

Calcula-se que o mistério que esconde os papangus e atrai gente da capital pernambucana e de cidades vizinhas injete ao menos R$ 20 milhões no município nesses dias tórridos de festança.

Foi a partir do início dos anos 1900 que os papangus começaram a ganhar protagonismo nos cortejos carnavalescos de Bezerros. A tradição segue rezando a cartilha do anonimato.

“Até hoje, os foliões mascarados não são identificados. Ninguém do público que está assistindo aos desfiles sabe quem é quem. Quando questionados, eles alteram a voz para que um amigo, parente ou vizinho também não possa identificá-los”, conta Mateus. “Inclusive o jeito de andar é alterado.”

Para chegar ao formato atual, divertido e colorido, as máscaras passaram por diferentes processos criativos de produção.

Conhecido como o “pai dos papangus”, Lula Vassoureiro lembra que começou a fazer máscaras de Carnaval quando tinha apenas seis anos de idade. “Mudou muito de lá para cá e vai continuar mudando”, afirma.

O artesão aprendeu o pouco que sabe sobre ler e escrever por conta própria. Nunca frequentou a escola. Mantém um ateliê com suas obras aberto ao público, onde recebe mais ou menos 10 mil alunos por ano.

“Herdei muita coisa do meu pai, que idealizou uns 37 blocos de papangus, e de outros artistas do agreste de Pernambuco”, conta ele, cujo nome de batismo é Amaro Arnaldo do Nascimento.

Explica que as primeiras fantasias que corriam pelas ruas de Bezerros eram feitas com coité, ou melhor, com a cabaça do fruto, dura e forte, num momento em que os foliões não tinham recursos para algo mais inventivo e desfilavam com umas “roupinhas bem esfarrapadas”.

Depois, artesãos como ele passaram a utilizar o papel de embrulhar charque na confecção das máscaras. Na opinião de Vassoureiro, o artesanato daquela época mantinha características simples, sem muito adorno.

Em uma outra fase de criação e aprimoramento estético, o artesão lembra que passou a usar tecidos na confecção das máscaras, inclusive fronha de travesseiro. “Muita gente começou a se enveredar por esse caminho do uso do pano, de jeans, achando que a coisa era fácil”, recorda-se ele, sorrindo.

O boom criativo, digamos assim, surge com a entrada do uso de papel colê, que, nas palavras do artesão, “deu um colorido especial às máscaras, que ganharam maior expressividade, com o nosso trabalho feito à mão”.

No quinto ciclo, surgiu o que Vassoureiro gosta de nomear como cabeção, tipo de máscara com grandes ornamentos. Em 2007, ele próprio chegou a criar aquela que se tornaria sua maior obra em tamanho: uma máscara de 4,5 metros, confeccionada com papel machê, material que dominaria a sexta temporada inventiva das máscaras de Bezerros.

Com obras espalhadas por cerca de 70 países, patrimônio vivo de Pernambuco, Vassoureiro, aos 80 anos de idade, garante que mais um novo período fértil se avizinha. Conta que está testando e pretende ampliar o uso de fibra de vidro em suas alegorias, mantendo, por óbvio, o anonimato da brincadeira. “Nisso não se mexe.”

O Carnaval do Papangu de 2026 que o aguarde.



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