Animação ‘Flow’ é ‘tesão na alma’ – 04/03/2025 – Mirian Goldenberg


É Carnaval no Rio de Janeiro. A algazarra dos blocos de rua contrasta com o silêncio do meu escritório, onde preparo um curso especial para o Dia da Mulher cujo tema é “A arte de gozar a maturidade: como aprender a ter ‘tesão na alma’”.

Dias antes, assisti à animação “Flow”, uma comovente história que, sem uma única palavra, só com os sons dos próprios animais, mostra o desespero de um gatinho solitário que perdeu seu lar em uma inundação. Para sobreviver ao caos, o gato se refugia em um barco e se une a outros animais, antes seus inimigos: um cão, uma garça, um lêmure e uma capivara.

“Flow”, conceito criado pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, é um estado mental que acontece quando estamos realizando uma atividade na qual ficamos completamente concentrados, quando perdemos a noção do tempo e a nossa energia psíquica está com foco total no que estamos criando. O conceito é geralmente traduzido como “fluxo”, mas prefiro “foco” e “concentração”. “Flow” é “tesão na alma”, como diria Rita Lee.

Estava nesse estado de total concentração quando tocou o interfone na cozinha. Chateada por interromper o foco, atendi: “Dona Mirian, chegou uma caixa da sua editora. Posso colocar no elevador?”. Para minha surpresa, era a 18ª edição do livro “A Arte de Pesquisar: Como Fazer Pesquisa Qualitativa em Ciências Sociais”.

Fiquei muitas noites sem dormir quando estava me preparando para o concurso de professora de Métodos e Técnicas de Pesquisa Qualitativa do departamento de antropologia cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1997. Foi assim que nasceu “A Arte de Pesquisar”.

O livro “Norbert Elias por Ele Mesmo” foi o melhor remédio para o meu medo de fracassar no concurso. Elias fez uma confissão que me confortou nas minhas torturantes noites de insônia.

“Tinha confiança em minhas capacidades intelectuais, e ideias não me faltavam. Mas o imenso trabalho intelectual que minha tese exigiu me parecera dificílimo. Só bem mais tarde fui pouco a pouco compreendendo que 90% dos jovens encontram dificuldade ao redigir seu primeiro trabalho importante de pesquisa; e, às vezes, acontece o mesmo com o segundo, o terceiro ou o décimo. Teria agradecido se alguém me dissesse isso na época. Evidentemente pensamos: ‘Sou o único a ter tais dificuldades para escrever uma tese (ou outra coisa); para todos os outros, isso se dá mais facilmente’. Mas ninguém disse nada.”

Eu acreditava que era a única a sentir pânico ao enfrentar os obstáculos e desafios do mundo acadêmico. Passei a sofrer um pouco menos quando descobri que um dos pensadores que mais admiro também sofreu com seus medos, inseguranças e vergonhas.

Como mergulhar no “Flow”? É preciso “sapientia”, como escreveu Roland Barthes.

“Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender. Essa experiência tem um nome ilustre e fora de moda: ‘sapientia’: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”.

Meu Carnaval foi saboroso, com muito “Flow” e “tesão na alma”. Mas confesso que, enquanto escrevia sobre sexualidade feminina e como gozar a maturidade, senti um pouquinho de inveja das foliãs alegres, barulhentas e frenéticas…


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