Partes de onças são vendidas à China por traficantes – 04/03/2025 – Ambiente


O local de encontro era um restaurante não muito longe dos cassinos ao longo do largo rio lamacento. Andrea Crosta e Mark Davis pegaram uma mesa no pátio ao ar livre, parecendo um pouco deslocados. Eram estrangeiros em um pequeno país sul-americano com poucos turistas. Vegetarianos em uma churrascaria.

Sentado próximo estava seu melhor agente disfarçado, Alpha. Ele estava jantando com o alvo do dia, um negociante chinês com ligações com uma rede de tráfico de vida selvagem. O telefone de Alpha estava virado para baixo na mesa, mas seu microfone estava ligado e sua lente olho de peixe estava gravando.

Alpha queria saber sobre onças-pintadas. Quanto pelos dentes? E uma carcaça de macho grande?

Crosta, a algumas mesas de distância, falava em voz baixa, embora estivesse seguramente fora do alcance auditivo. Ele é o fundador da Earth League International (ELI), organização sem fins lucrativos com sede em Los Angeles que é uma das instituições de bem-estar animal mais incomuns do mundo.

Ele, Alpha e Davis, o chefe de inteligência do grupo e ex-agente do FBI, estavam no Suriname para investigar o contrabando de onças e passar as informações para o Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS na sigla em inglês).

“Nosso trabalho não é na selva”, disse Crosta. “É aqui, na cidade.”

No ano passado, o DHS estabeleceu uma unidade de Investigações de Segurança Interna (HSI) para combater o tráfico de vida selvagem e crimes ambientais. O esforço inicialmente enfrentou ceticismo, disse Keith McKinney, chefe da unidade, dada a necessidade urgente de reforçar a segurança nas fronteiras e combater os grupos latino-americanos e chineses que impulsionam o tráfico de drogas.

“Se temos 50 mil pessoas morrendo por ano de overdoses de fentanil [nos EUA], como podemos desviar recursos para abordar algo como o tráfico de vida selvagem?”, disse McKinney. “Mas a verdade é que os mesmos grupos envolvidos no tráfico de vida selvagem estão contrabandeando pessoas, armas e dinheiro.”

Desde que assumiu o cargo, o presidente Donald Trump priorizou deportações e reforços da imigração e começou a cortar gastos do governo em outros lugares. Seus nomeados no DHS não responderam a perguntas sobre planos para esta pequena equipe investigativa, cujos casos criminais podem levar anos para serem construídos.

Mas Trump também está se movendo para combater a influência chinesa no Ocidente e intensificar a pressão sobre grupos de tráfico na América Latina que ele busca rotular como “terroristas”.

O comércio de vida selvagem gera US$ 23 bilhões (R$ 134 bilhões) por ano para organizações criminosas transnacionais, de acordo com o HSI, cuja estimativa inclui vendas paralelas em madeira ilegal.

A agência classifica o tráfico de vida selvagem como a quarta maior fonte de receita ilícita globalmente, depois de drogas, tráfico humano e produtos falsificados. É um exemplo do que o governo dos EUA descreve como “convergência de crimes” —múltiplas fontes de receita ilegal que podem criar mais caminhos para derrubar a mesma estrutura.

O Congresso autorizou o DHS a estabelecer a unidade de tráfico de vida selvagem do HSI em 2023. Seus agentes e analistas estão baseados em um escritório no norte da Virgínia. Por enquanto, a unidade tem pouca capacidade de operar em lugares como Suriname, mas as informações fornecidas por grupos parceiros como a ELI ajudam a mapear redes criminosas em nações onde o governo dos EUA tem mais pessoal.

Crosta disse que a ELI escolhe seus alvos com base em sua própria pesquisa de inteligência. Ela passa as informações para o HSI, mas não sabe quando ou mesmo se o governo agirá.

Ele chama o comércio de animais exóticos de “o ponto fraco” do crime organizado, porque os contrabandistas não esperam tanta vigilância da aplicação da lei quando estão movendo barbatanas de tubarão ou partes de felinos.

Na churrascaria, o negociante gabou-se de seus laços com uma rede que conecta gângsteres no sul da China com grupos sul-americanos que fornecem partes de onça-pintada. Ele disse a Alpha que estava operando minas de ouro na floresta e trabalhando para traficantes surinameses que enviam cocaína, “farinha”, ele descreveu, para a Europa.

Ele estava procurando negociar dinheiro e criptomoeda e pensava que Alpha —que falou sob a condição de que apenas seu codinome fosse usado— era um corretor baseado no Panamá que poderia ajudar.

No meio da refeição de porco e cordeiro no espeto, um mensageiro chegou para entregar uma bolsa cheia de euros e dólares. A câmera escondida de Alpha gravou isso também.

O fluxo de partes de animais alimenta a demanda por ingredientes obscuros em fórmulas de medicina tradicional chinesa e receitas de comida. A presença crescente da China no Ocidente —impulsionada pelo financiamento de projetos de infraestrutura por Pequim, bem como por empresas privadas— trouxe uma onda de criminosos e aproveitadores para as florestas e pescarias da América Central e do Sul, de acordo com pesquisadores, grupos ambientais e autoridades dos EUA.

Os cartéis de drogas da região trabalham com grupos criminosos chineses para construir cadeias de suprimento para os produtos químicos usados para fabricar fentanil, metanfetamina e outras drogas sintéticas, dizem analistas e autoridades dos EUA.

Seus laços em expansão têm sido uma força motriz por trás do número recorde de migrantes chineses —mais de 60 mil — que entraram ilegalmente nos Estados Unidos pela fronteira com o México desde 2023.

“Este é um momento decisivo”, disse Vanda Felbab-Brown, que pesquisa crime organizado e tráfico de vida selvagem na Brookings Institution. “É sintomático do capitalismo voraz dos cartéis sobre economias legais e ilegais.”

Governos na América Central e do Sul, incluindo o de Suriname, proibiram a caça furtiva e o tráfico de vida selvagem. Mas a aplicação da lei é vacilante, e os caçadores enfrentam pouco risco de serem punidos, de acordo com um novo relatório do Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal.

O grupo documentou 1.945 casos de caça furtiva ilegal ou tráfico de vida selvagem em 18 países de língua espanhola de 2017 a 2022. Os casos incluíram 188 onças.

Crosta estudou zoologia e gestão de negócios na Itália, sua terra natal, trabalhou como oficial dos Carabinieri, protegendo juízes e promotores da máfia, e depois se tornou empreendedor no ramo de tecnologia e consultor de segurança antes de criar a empresa fins lucrativos há 13 anos.

Sua equipe anteriormente investigou laços de cartéis de drogas com operações de pesca ilegal no mar de Cortés, no México, que visam o peixe totoaba por sua bexiga natatória —órgão que modula a flutuabilidade e é uma iguaria na China. As redes de emalhe, comuns em barcos de pesca ilegal, levaram a menor toninha do mundo, a vaquita, à extinção.

No Suriname —país que ostenta 93% de cobertura florestal— caçadores de onças e traficantes estão fornecendo “tigres americanos” para mercados na Ásia, onde as populações nativas de tigres foram quase exterminadas.

Os caçadores podem ganhar até US$ 3.000 (cerca de R$ 17,5 mil) por onça. Os traficantes que processam os animais para envio à Ásia, porém, podem ganhar muito mais.

Os felinos são os maiores das Américas, pesando até aproximadamente 160 kg, com um habitat que vai da Patagônia até as fronteiras entre os EUA e o México. Seus enormes dentes são cobiçados por caçadores e usados como pingentes.

“A máfia chinesa gosta de exibi-los”, disse Crosta. “Quanto maior o dente, mais dinheiro você tem.”

As peles de jaguar são usadas para adornos. Órgãos sexuais e ossos são adicionados a um “vinho” que supostamente aumenta a virilidade masculina. Suas carcaças são fervidas em cozinhas rudimentares e transformadas em uma pasta que supostamente tem propriedades curativas e é fácil de contrabandear em bagagens pessoais.

Um dos grupos de tráfico de vida selvagem mais prolíficos do Suriname é uma rede que se ramificou no contrabando de migrantes do sul da China para os Estados Unidos. Eles cobram cerca de US$ 55 mil (R$ 321 mil) por pessoa, de acordo com relatórios da ELI fornecidos ao governo dos EUA.

Uma vez que os migrantes chegam ao Suriname, os contrabandistas lhes dão passaportes falsos que eles usam para chegar ao México. De lá, eles seguem para a Califórnia.

“O problema é que as agências de aplicação da lei dos EUA e os governos na América Latina carecem de recursos, habilidades linguísticas e conhecimento cultural para desmantelar essas redes”, disse Leland Lazarus, especialista em relações entre China e América Latina na Florida International University.

Desmatando a floresta

O Suriname, ex-colônia holandesa que conquistou a independência em 1975, é linguisticamente e fisicamente isolada do resto da América do Sul —como uma ilha caribenha cercada por árvores em vez de água.

A maioria dos 650 mil habitantes do país vive em Paramaribo e arredores, a capital de 400 anos que hoje opera como um acampamento fronteiriço, com dólares, euros e ouro circulando em uma economia desenfreada.

As ruas são uma mistura de igrejas de madeira históricas, templos hindus, cassinos, mesquitas, restaurantes javaneses, comerciantes de ouro e grandes lojas chinesas vendendo de tudo, desde ferramentas elétricas até uísque e tênis Nike falsificados.

O Departamento de Estado dos EUA identifica o Suriname como um centro de tráfico de cocaína. Alguns dos líderes atuais e anteriores do país foram condenados por tráfico de drogas.

“Nossas instituições são totalmente corruptas”, disse Erlan Sleur, ativista que voltou para casa no Suriname há quase 20 anos após estudar biologia na Holanda.

Sleur usa câmeras de drones para documentar a destruição catastrófica causada pela mineração de ouro, parte dela em áreas florestais protegidas, e derramamentos de produtos químicos usados para processar o minério, incluindo mercúrio e cianeto. Os garimpeiros, tanto surinameses quanto estrangeiros, estão cada vez mais controlados por grupos criminosos. Eles também têm como alvo as onças.

Romeo Lala é chefe do Serviço Florestal do Suriname, que supervisiona o cumprimento dos tratados internacionais que regulam o comércio de vida selvagem. Ele disse que seu país tem trabalhado com sucesso com organizações não governamentais para promover a conservação de onças.



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