O Brasil ainda está aqui, mas já não é o mesmo – 05/03/2025 – Sérgio Rodrigues


Terminada no domingo de Carnaval a jornada épica e exaustiva que fez do filme de Walter Salles o primeiro a conquistar um Oscar na história do nosso cinema, o Brasil ainda está aqui, mas já não é exatamente o mesmo.

O alcance social e político da arte é famosamente limitado. No entanto, há casos muito raros em que uma conjunção quase milagrosa de fatores pode levar uma obra realizada com apuro estético e honestidade intelectual —não populista, em suma— a se tornar febre de consumo e retocar o retrato de uma sociedade. É o caso feliz de “Ainda Estou Aqui”.

Levando-se em conta apenas esse alcance, a versão cinematográfica do drama da família do “desaparecido” ex-deputado Rubens Paiva, assassinado nos porões da ditadura militar, teria poucos rivais à sua altura numa hipotética eleição de obra de arte mais relevante da história do país.

Libelo humanista contra o autoritarismo que, rejeitando o tom panfletário e o choro rasgado, a direção madura de Waltinho e a interpretação cheia de sutilezas de Fernanda Torres tornaram mais devastador, “Ainda Estou Aqui” traça riscos de giz bem nítidos no chão da democracia brasileira.

Bolsonaristas convictos e apoiadores da extrema direita em geral o odeiam, claro. Um discurso político-ideológico baseado na saudade da ditadura e no elogio a torturadores, além de denunciador de uma fictícia “ditadura do STF”, nada pode fazer além de tratar o filme como o inimigo que ele de fato é.

Da mesma forma, democratas convictos —da esquerda, do centro e até da (minguante) direita civilizada— encontram naquela história, de maneira quase didática, as linhas de força em torno das quais sempre valerá a pena formar uma frente ampla.

Se essa divisão pode parecer simples, quase automática, de óbvia não tem nada para um público jovem que, não tendo vivido o pesadelo da ditadura nem sido alcançado por sua memória, tornou-se presa fácil nos últimos dez anos da cantilena desonesta de lambedores de coturnos.

Menos óbvias são também outras reações que o filme provoca – do vergonhoso silêncio de supostos democratas interessados nos votos da extrema direita, como Tarcísio de Freitas, ao primitivo argumento “progressista” de que, numa história protagonizada por brancos de classe média alta, os verdadeiros oprimidos não dão as caras.

Na bagunça do entrechoque de visões de mundo característico da eternamente inacabada democracia liberal, é fundamental uma freada de arrumação como a que “Ainda Estou Aqui” promove.

Ajuda a gente a não perder de vista o que é fundamental, o que acessório, o que é oportunista e o que é apenas falso. Num momento em que a democracia está sob ataque no mundo inteiro —de modo mais evidente no país que criou o Oscar–, o valor dessa lucidez é inestimável.

E ainda nem mencionei o antídoto contra nossa vira-latice endêmica que foi acompanhar a maratona de entrevistas gringas de Fernanda Torres. Com seu humor sarcástico e sua altivez de quem nasceu na realeza das coxias, a atriz desfilou uma elegância e uma completa ausência de deslumbramento que Hollywood não está habituada a ver. Nem nós.


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