Sempre se achou que é preciso ver para crer. Mas Engels, o brilhante parceiro de Marx, ponderava que em ciência a visão como prova definitiva é apenas uma suposição do empirismo radical, pois relações abstratas como na geometria ou na matemática são formalmente comprobatórias. Na vida prática, a tendência, exceto na vida religiosa, é acreditar no que se vê, porque o predomínio das noções comuns impõe ideias adequadas à realidade imediata.
E quando se vê e não crê? Disso a vida pública brasileira passou a dar exemplos alarmantes para o senso comum. É o fato da tentativa de golpe de Estado, motivo para que pela primeira vez na história do país um ex-presidente da República, militares e ex-militares da mais alta patente tenham sido indiciados como réus pelo Supremo Tribunal Federal.
À medida que a anestesia política de setores ponderáveis da população vai perdendo efeito, vibram pensamentos e queimam as palavras atinentes à gravidade do ocorrido. No entanto, é largo o espectro dos que se recusam a crer no que veem. Algo como o caso extremo do juiz que zera um processo por excesso de provas.
Num primeiro plano, avultam a Câmara dos Deputados e o Senado. Da Câmara não há muito o que se esperar, tão heterogênea é a sua composição em termos de idade, educação política e compromisso com o que ainda resta de vinculação ideológico-partidária. O segundo, a se julgar pelo nome romano (“senatus”, conselho dos mais velhos) sempre inspirava algum respeito pela suposição de senioridade política.
Resguardados uns poucos nomes, porém, acabou a seriedade. Há quem enxergue Cristo trepado na goiabeira, quem veja a depredação no 8/1 (danos orçados em R$ 50 milhões) como um piquenique de idosos aloprados, quem não reconheça a evidência boçal da tentativa de golpe. Um tipo de cegueira em que, no presente, só se enxergam dejetos do passado.
“Bem-aventurados os que não viram e creram”, disse Jesus aos discípulos (João, 20:9). E os que não querem ver para não crer? Dirão ser esse um direito de cada um. Senão, uma excentricidade, que traz de volta um episódio da adolescência. Numa família tradicional, o velho patriarca recusava-se a ver televisão, então novidade cara, convicto de que não era verdadeira a transmissão da imagem. Denunciava o que lhe parecia fraude. Ante a insistência de um parente para que assistisse a uma fala de Jânio Quadros, ameaçou: “Mais uma asneira dessas e eu vou empunhar o meu bacamarte!”
Mas deputados, senadores e membros ditos razoáveis da sociedade civil não têm o direito de não ver dois fatos: primeiro, a trama dolosa nos escalões do poder, comprovada em atas e atos, para um golpe político que previa assassinatos das mais altas autoridades e, em segundo, a manipulação das massas com efeitos violentos de manada. Gado tresmalhado continua sendo aboiado em favor da impunidade. Só que não é caso de anistia. Se foi culposa, isto é, sem dolo, a delinquência de ignorantes como bucha de canhão golpista, a prova diferencial cabe só a advogados e juízes. Para bem ver, basta um pouco de lucidez.
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