Gene Hackman soube fazer qualquer papel ao seu alcance – 27/02/2025 – Ilustrada


Gene Hackman foi encontrado morto nesta quinta-feira, ao lado de sua mulher, na casa deles, em Santa Fé, nos Estados Unidos. As circunstâncias do ocorrido ainda estão em fase de investigação. O certo é que Hackman —que esteve na pele de policiais, detetives, homens comuns dado ao voyeurismo, presidentes dos Estados Unidos corruptos e xerifes mal-encarados— morreu discretamente, como viveu.

Talvez sua declaração mais famosa seja esta: “Me preparei para ser ator, não uma estrela. Me preparei para interpretar papéis, não para lidar com fama, agente, advogados e imprensa.”

Não significa que não amasse as estrelas. Uma de suas primeiras impressões sobre a arte de interpretar vinha de Errol Flynn, o Robin Wood do filme de 1938, o galã preferido dos grandes filmes de aventura da Warner Bros. Mas passava por outros atores da época, como James Cagney, o gângster dos gângsters, outro ator cheio de energia.

Ainda jovem passou a estudar artes em Pasadena, na Califórnia. Ali foi colega de Dustin Hoffman. E ambos foram escolhidos por um professor como os menos dotados da classe para o sucesso.

Parece que não tinha bom olho esse professor. Mas foi esse veredito que levou Gene a se mudar para Nova York —e Hoffman também. Alistou-se no exército, onde foi destacado para servir na China, Japão, Havaí, de onde foi dispensado em 1951. Trabalhou em Nova York, estudou jornalismo, depois produção para a televisão no estado americano de Illinois.

Como a ideia de se tornar ator permanecia intacta, voltou para a Califórnia. Agora seu modelo de interpretação era o Marlon Brando de “Uma Rua Chamada Pecado”, o maior nome da geração de atores surgida nos anos 1950.

Após empilhar papéis em séries para a TV dos anos 1950 e 1960, consegue um papel no primeiro filme célebre de sua carreira —”Lilith”, de Robert Rossen, de 1964. Mas era um coadjuvante bem coadjuvante, o que o credenciou a mais papéis na TV. Em “Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas”, de 1967, de Arthur Penn, teve mais destaque —apareceu como Buck Barrow, o irmão de Clyde, o que lhe valeu a indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

Foi um dos filmes mais marcantes dessa década. O primeiro trabalho em grande escala a fazer dos bandidos os heróis. Um dos primeiros sintomas —cinematográficos, ao menos— da desilusão que a Guerra no Vietnã provocou nos jovens nos Estados Unidos. A ultraviolência ali se manifestava, na brilhante sequência final, como uma espécie de violência de Estado.

Revolta não era o problema de “Operação França”, que emplacou como melhor filme de 1971. Também levou melhor direção, para William Friedkin, e melhor ator —naturalmente, para Gene Hackman, que consagrou o detetive Popeye Doyle e seu inusitado chapeuzinho como um dos mais célebres policiais de seu tempo.

Estava na rota de seus velhos heróis, tipos enérgicos —e não necessariamente galãs. Mas o próximo papel marcante viria com “A Conversação”, de 1974, de Francis Ford Copolla. Fracasso de público a seu tempo, mas um filme intrigante, onde Hackman se impõe como homem perfeitamente comum, um especialista em sistemas de segurança de som que, de tanto espionar os outros, acaba consumido pela paranoia.

Não foi preciso esperar muitos anos para perceber o quanto o filme de Copolla já falava de um mundo cujos aparelhos sofisticados destruía a privacidade. Não foi por acaso que ganhou a Palma de Ouro daquele ano em Cannes. Talvez Harry Caul, seu personagem, fosse um homem comum demais para receber a atenção do Oscar.

Mas foi uma composição brilhante, e um dos papéis mais marcantes desse ator incomum. De certo modo, voltava ao padrão de interpretação que o impressionou em “Uma Rua Chamada Pecado”, onde Marlon Brando, disse Hackman, fazia parecer tudo aquilo natural. Como seu Harry Caul, afinal.

Se chamou a atenção como o vilão Lex Luthor no primeiro “Superman”, de 1978, voltaria a se destacar a ponto de novamente ser indicado ao Oscar pela sua atuação como um dos agentes federais que busca os responsáveis pelo linchamento de alguns ativistas antirracismo em “Mississippi em Chamas”, de 1988, de Alan Parker, ao lado de Willem Dafoe.

Era uma espécie de Popeye Doyle sem chapéu, mas novamente um obstinado em busca de justiça. E, no caso, era preciso bastante obstinação —o Mississippi inteiro tinha intenção de permanecer racista e de esconder os responsáveis pelo caso.

Esse tipo era bem diferente do perverso xerife do faroeste “Os Imperdoáveis”, de 1993, de Clint Eastwood, que desta vez lhe daria o Oscar de melhor coadjuvante. Uma das razões de o filme ter ressuscitado o faroeste naquele momento foi a personagem de Hackman desenvolvia ali um tipo interessante. Pois o sadismo convivia ali com o desejo —sincero, acredita-se— de preservar a ordem a todo custo.

Ele voltaria a trabalhar com Clint alguns anos depois em “Poder Absoluto”, agora no papel de um presidente da República pilhado em um ato criminoso por um ladrão de joias. De xerife sádico a político inescrupuloso, parecia ter chegado a um tipo ideal.

É verdade que repetiria o papel de vilão com maestria em “Rápida e Mortal”, de 1995, de Sam Raimi, onde é John Herod, homem mau, muito mau, responsável por ter matado o pai da personagem de Sharon Stone, que agora busca a vingança.

Mas o ator não se fixou num tipo único. Outra parceria importante de sua carreira foi com Mike Nichols, famoso diretor de atores. Com ele, Hackman trabalhou em “Lembranças de Hollywood”, de 1991, mas esse era um filme essencialmente feminino. O real encontro se deu em “A Gaiola das Loucas”, de 1996, onde o ator surge como o senador preconceituoso e cioso de sua imagem que, por acasos da vida, acaba tendo de se travestir para escapar de uma boate gay.

Se Gene já tinha provado sua versatilidade, esse personagem foi, em todo caso, a demonstração final. Podia interpretar qualquer papel, e bem, os cômicos tanto quanto os dramáticos ou policiais. E para tirar qualquer dúvida ele seria ainda o Royal Tenenbaum do primeiro filme a marcar a carreira de Wes Anderson, “Os Excênticos Tenenbaums”, de 2001.

Estava próximo da aposentadoria, para a qual se retiraria em 2004, num rancho em Santa Fé, digno de cinema, com visão para as Montanhas Rochosas do Colorado. Não estava cansado de atuar, mas do que vinha junto de seu sucesso, afinal.

Em seu retiro, na pacata capital do Novo México, cidade com menos de cem mil habitantes, famosa como refúgio de milionários, artistas e galeristas de arte, viria também a morrer Eugene Allen Hackman, de causas ainda desconhecidas, ao lado da mulher e, segundo o xerife do condado, também de seu cachorro.



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