“Nossa simples existência é ilegal”: russos LGBTQIA+ temem pelo futuro

As jovens mães Yana e Yaroslava não querem sair da Rússia com seu filho de 6 anos. Mas elas temem que uma pesada nova lei antigay aprovada por deputados russos não lhes dê outra alternativa.

“Nós somos cidadãs, como todos os outros. Pagamos impostos, apoiamos instituições de caridade. Mas o governo está fazendo tudo para nos forçar a deixar o país. Sinceramente, é assustador ficar”, disse Yaroslava à CNN.

A câmara alta do parlamento russo assinou sua aprovação final no final de novembro a um novo pacote legislativo que endurece uma lei existente sobre a chamada ”propaganda LGBTQIA+”; ela foi promulgada na segunda-feira (5) pelo presidente Vladimir Putin.

As restrições adicionais à “propaganda” que poderiam promover “relações e/ou preferências sexuais não tradicionais” são acompanhadas de penalidades severas. Para os ativistas, a lei colocará as comunidades LGBTQIA+ sob maior escrutínio e vigilância.

Enquanto o governo se preparava para finalizar a expansão da lei antigay discriminatória de 2013, membros da comunidade LGBTQIA+ na Rússia disseram à CNN que temiam pelo seu futuro incerto.

“Somos a categoria mais vulnerável dentro dos grupos LGBTQIA+. Temos um filho e eles (autoridades russas) podem nos pressionar”, afirmou Yaroslava.

Yana e Yaroslava, ambas profissionais independentes da área de marketing, estão criando o filho na segunda maior cidade russa, São Petersburgo. Lésbicas, elas pediram para não divulgar seus sobrenomes por razões de segurança.

“Nossa simples existência é ilegal para o nosso estado e até mesmo para o nosso filho”, disse Yaroslava.

“De acordo com a lei, somos pessoas de orientação sexual não tradicional e as crianças não devem nos ver, ou a gente não deveria existir. Nosso filho nos vê. Por essa lógica, nossa própria existência é ‘propaganda de relações sexuais não tradicionais’ dentro de nossa família. Isso significa que somos ilegais”.

O casal diz que criou uma bolha de proteção em torno de família, a fim de evitar o escrutínio das autoridades. As medidas incluem o uso de contas privadas nas redes sociais, ter acesso a uma rede de pessoas confiáveis, enviar o filho para um jardim de infância particular (onde o fato de uma criança ter duas mães é menos provável de desencadear uma reação homofóbica) e usar um hospital particular onde elas correm menos risco de um médico chamar as autoridades de proteção infantil para fazer perguntas sobre a configuração da família.

Mas o casal diz que está relutante em sair por causa da falta de recursos financeiros e programas de relocação disponíveis em países receptivos aos LGBTQIA+, mesmo com o medo de viver sob a legislação endurecida.

“Esperamos uma nova onda de ódio”

O novo pacote legislativo reforça a proibição existente do país de espalhar a chamada “propaganda de relações sexuais não tradicionais” entre menores, tornando ilegal compartilhar qualquer informação em todos os meios de comunicação e em todas as idades.

Alguns adotaram à autocensura em antecipação à aprovação da lei.

A editora Eksmo, baseada em Moscou, tomou medidas preventivas censurando alguns fragmentos do livro “Shattered”, que contém descrições de cenas sexuais entre dois homens, mesmo antes da lei ser finalizada. A editora explicou que havia escondido 3% do texto – cobrindo-o em tinta preta – “para não esconder o fato da censura”, como escreveu a própria editora num comunicado de imprensa.

“Estou feliz que a editora decidiu não cortar o texto, mas sim marcá-lo em preto. Onde havia sentimentos, a atração dos personagens, onde havia a experiência de conhecer sua própria sexualidade, agora haverá linhas negras vazias”, disse o autor, Max Falk, em um press release. A história, publicada em outubro, é sobre o “amor e amizade de dois jovens” de diferentes círculos sociais na Rússia.

Romances recentes centrados em personagens LGBTQIA+ têm atraído muitos leitores, causando uma agitação entre políticos russos.

Um best-seller de 2021 chamado “Leto v pionerskom galstuke” (sem tradução no Brasil), que explora o romance entre dois homens que se conheceram em um acampamento de verão em Kharkiv soviético na década de 1980, vendeu um recorde de 200 mil cópias impressas e 32 mil edições digitais. Deputados e figuras públicas responderam ao sucesso do livro criticando-o e apelando à adoção da legislação antigay.

“Como autora de livros que abordam o tema, é claro que estou muito preocupada”, disse a escritora gay Ksenia à CNN. Ela pediu para não dar seu sobrenome por medo de repercussões.

Alexander Belik, ativista pelos direitos LGBTQIA+ na Rússia, disse que a repressão do Kremlin sobre pessoas gays iria desencadear uma nova onda de ódio. Crédito: Alexander Belik.

No dia em que o projeto de lei passou pela câmara baixa do parlamento, Ksenia descobriu que seus dois livros contendo referências LGBTQIA+ tinham desaparecido da Labirint, uma livraria online. A loja confirmou em um press release que “suspendera temporariamente” a venda de alguns livros para “analisar seu conteúdo para a presença de informações proibidas neles”.

“A autocensura é algo importante”, disse Ksenia, apontando que a lei nem sequer havia entrado em vigor.

“Não sei como essa lei afetará a distribuição desse conteúdo, mas presumo que de alguma forma as pessoas vão encontrá-lo”, acrescentou a escritora.

Ela espera que o novo pacote não impeça que livros sobre personagens LGBTQIA+ sejam publicados e lidos.

À medida que ativistas de direitos humanos antecipam a censura na forma de sites bloqueados, livros proibidos e multas regulares, blogueiros e criadores de conteúdo LBGTQIA+ estão tornando seus canais de mídia social privados e excluindo postagens, de acordo com a Sphere Foundation, uma organização que defende os direitos das pessoas LGBTQIA+ na Rússia e que lançou uma abaixo-assinado contra o novo projeto de lei.

“Esperamos uma nova onda de ódio”, disse Alexander Belik, chefe do programa de advocacy da Sphere, à CNN. “A lei amplia a retórica pública do ódio”.

Desde que o debate sobre as restrições começou,  pessoas LGBTQIA+ se tornaram cada vez mais preocupadas com sua segurança, de acordo com Belik.

“A comunidade está em um estado de alarme”, contou.

“Pedimos à comunidade LGBTQIA+ para não sucumbir ao pânico e continuar vivendo suas vidas”, continuou.

O ativista contou que a organização continuará lutando pela abolição da lei e apoiará aqueles que podem ser perseguidos sob ela.

Não aos “valores estrangeiros”

O Kremlin – sede do governo russo – descreve consistentemente as comunidades LGBTQIA+ na Rússia como pessoas em oposição aos “valores tradicionais”, uma linha de retórica que os ativistas dizem que prejudica diretamente essas pessoas em todo o país.

Desde que a primeira lei sobre “propaganda gay” foi aprovada em 2013, a Rússia tem reprimido repetidamente a comunidade gay. Os casos mais notáveis aconteceram em 2017 e em 2019 na região sul da Chechênia, onde ativistas relataram que dezenas de homens e mulheres foram detidos e alguns torturados e mortos por sua orientação sexual. Nenhuma investigação adequada foi feita em seguida.

Putin enquadrou o que ele descreveu como a renúncia ocidental aos “valores tradicionais” como um “desafio” à sociedade russa em um discurso em setembro – aquele no qual anunciou a anexação de quatro regiões ucranianas, em violação do direito internacional. Na época, ele estava enfrentando críticas incomuns até mesmo dos partidários do Kremlin sobre as enormes perdas de Moscou no campo de batalha na Ucrânia, e insatisfação no país.

“Queremos que nossas escolas imponham aos nossos filhos, desde os primeiros dias de escola, perversões que levam à degradação e extinção? Queremos martelar em suas cabeças as ideias de que certos outros gêneros existem junto com mulheres e homens e oferecer-lhes cirurgia de redesignação de gênero? É isso que queremos para o nosso país e para os nossos filhos?”, Putin declarou direto do Salão Georgievsky do Kremlin.

“Tudo isso é inaceitável para nós. Temos um futuro diferente que é nosso”, continuou Putin.

O novo pacote proíbe todos os materiais que as autoridades consideram ser “propaganda” LBGTQIA+, tornando-o ilegal entre russos de todas as idades e constituindo uma ofensa passível de multa de até US$ 6,4 mil (cerca de R$ 33,5 mil) para indivíduos e até cerca de US$ 80 mil  (cerca de R$ 419 mil) para empresas. Estrangeiros poderão ficar presos por até 15 dias ou serem deportados por violar a lei. A principal diferença entre a versão original da lei e a expandida é que, agora, a proibição da chamada “propaganda” do mesmo sexo será aplicada em todas as idades e em todos os meios de comunicação.

O presidente da câmara baixa do parlamento russo, Vyacheslav Volodin, apelidou a nova legislação de “Resposta à Lei Blinken”, referindo-se a um tuíte no qual o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, condenava a proposta de expansão da proibição.

“É a melhor resposta ao Secretário de Estado, Sr. Blinken. Pare de nos impor valores estrangeiros. Você destruiu seus valores – veremos como tudo termina, mas será definitivamente triste”, declarou Volodin à Duma – a câmara baixa da Rússia – depois da votação unânime pelas alterações na versão final da lei.

A aplicação de Putin às leis anti-LGBTQIA+ faz parte de uma tendência mais ampla de políticas repressivas, com o Kremlin reforçando a oposição aos chamados valores ocidentais, de acordo com Dan Healey, professor de história russa moderna na Universidade de Oxford, no Reino Unido.

“Eles estão sendo unidos em uma política social e cultural e de defesa mais ampla em torno dos chamados valores tradicionais. E isso reduz o espaço dentro do qual uma existência não heterossexual pode ocorrer confortavelmente na Rússia”, disse Healey à CNN.

“As consequências para as pessoas LGBTQIA+ na Rússia são enormes e muito, mas muito repressivas. Elas se tornam uma espécie de pessoas no limbo, incapazes de se tornar visíveis no espaço público”.

Direitos transgêneros sob ameaça

Ativistas russos afirmam que a perseguição das autoridades às comunidades LGBTQIA+ na Rússia está ligada à guerra na Ucrânia.

Eles sugerem que o objetivo do novo pacote legislativo é distrair a nação da reação interna contra a mobilização parcial de Putin, anunciada em setembro, e da guerra de desgaste que esgotou os recursos militares da nação.

“Entre outras coisas, a lei também está desviando a atenção do que está acontecendo no país. Assim que as coisas pioram um pouco, temos um inimigo para apontar e dizer que é por causa deles que a situação está tão difícil”, opinou Anton Macintosh, do primeiro grupo de apoio transgênero da Rússia, T-Action. A organização foi rotulada como um “agente estrangeiro” – um status próximo do de “traidor” que impede seu funcionamento na Rússia – no dia seguinte ao parlamento russo aprovar a terceira e última leitura da lei.

Macintosh disse que sua organização tinha sido contatada por um número crescente de pessoas preocupadas que não seriam capazes de receber apoio médico adequado em seus processos de transição de gênero. De acordo com o ativista, o processo é atualmente legal se uma pessoa passar por uma extensa revisão para obter a avaliação de um psiquiatra, mas ainda não está claro como o novo pacote legislativo será implementado.

Vanya Solovey, do grupo de direitos trans Transgender Europe, disse à CNN que a nova legislação aumenta o estigma que as pessoas trans na Rússia têm de enfrentar. Crédito: Vanya Solovey.

“Ao contrário de uma pessoa cisgênero, ao visitar um médico ou ser internado no hospital uma pessoa transgênero não tem a opção de ocultar seu status”, disse Macintosh, referindo-se às mudanças físicas resultantes da terapia hormonal. “Haverá saúde adequada disponível para pessoas transgênero?”

Quanto menos acesso a grupos de apoio uma pessoa transgênero tem, mais aterrorizada e sem esperança ela provavelmente se sentirá, explicou Macintosh. Estigmatizar seu status causa ainda mais tensão emocional.

“Recebemos muitas cartas suicidas. Fazemos pesquisas a cada três meses perguntando sobre o bem-estar emocional. Muitas pessoas têm compartilhado sentimentos duros dizendo que não sabem como vão viver”, contou Macintosh.

“Não é apenas uma lei antigay, também é explicitamente uma lei antitrans”, disse Vanya Solovey, uma oficial de defesa e programa para a Europa Oriental e Ásia Central no grupo de direitos trans Transgender Europe, fazendo referência à parte do pacote que proíbe a promoção de informações que possam fazer com que as pessoas queiram mudar o sexo atribuído ao nascimento.

“Ela visa explicitamente aumentar a conscientização sobre a transição de gênero. E isso é, naturalmente, muito preocupante”, acrescentou.

“Quando alguém (Putin) neste alto nível de autoridade espalha esses equívocos, novamente isso aumenta o estigma que as pessoas trans têm que enfrentar”, completou.

“Outro tijolo na construção de uma autocracia”

Quando o projeto de lei passou sua primeira leitura na Duma em outubro, a primeira política transgênero da Rússia, Yulia Alyoshina, tomou a decisão de abandonar seu papel como chefe regional do partido Iniciativa Cidadã e encerrar sua carreira política.

“Eu nunca me envolvi em tal propaganda, mas não tenho ideia de como continuar a conduzir atividades políticas públicas como uma mulher transexual assumida”, escreveu num post no Telegram.

Yulia Alyoshina, a primeira política transgênero da Rússia, disse que a nova lei era discriminatória e tornaria a vida mais difícil para a comunidade LGBTQ da Rússia. Crédito: Yulia Alyoshina.

Alyoshina contou que foi discriminada como política transgênero em várias ocasiões desde que recebeu seu novo passaporte em 2020, mas disse que essa lei vai complicar ainda mais a vida já difícil de todas as pessoas LGBTQIA+ na Rússia.

“A lei é discriminatória. Qualquer tipo de informação pode cair sob o termo ‘propaganda”, disse à CNN. “Como não está claramente enunciado, isso será deixado ao critério dos tribunais”.

“O texto da lei rejeita a equivalência social das preferências ‘tradicionais’ e ‘não tradicionais’”, acrescentou. “Ou seja, pessoas LGBTQIA+ na Rússia são reconhecidas pelas autoridades em nível legislativo como socialmente desiguais. Em outras palavras, pessoas de segunda classe”.

Alyoshina disse que o novo pacote é caraterístico da política de um governo autoritário em relação à sociedade.

“A vida sexual dos cidadãos é uma parte da liberdade humana que um regime autoritário não pode tolerar”, opinou. “A adoção da lei é apenas mais um tijolo na construção de uma autocracia na Rússia”.

Frederik Pleitgen e Claudia Otto da CNN contribuíram na reportagem.

Este conteúdo foi originalmente publicado em “Nossa simples existência é ilegal”: russos LGBTQIA+ temem pelo futuro no site CNN Brasil.

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