Xica Manicongo: rainha em transição – 03/03/2025 – Opinião


Xica foi redescoberta! Zarpando da Bahia de 1591, a arca da sua história passou pela academia, resgatada nos estudos do professor Luiz Mott; pelos movimentos sociais LGBTI+ do século 20, tendo seu nome social atribuído pela saudosa militante Majorie Marchi; e chegou à Marquês de Sapucaí no século 21, por meio do enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo”, da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, organizado pelo carnavalesco Jack Vasconcelos.

Batizada como “Francisco”, era esse o seu nome antes de ter sido mais uma africana escravizada? Perdeu-se nos cadernos contábeis que a silenciaram e abafaram a sua liberdade. Entretanto, vale lembrar que até o inferno da escravidão tinha frestas, linhas de fuga escavadas pelo povo negro, em toda a sua diversidade, ao longo dos séculos.

Tachada pejorativamente pelos portugueses de quimbanda, como eles se referiam a integrantes de uma “quadrilha de feiticeiros sodomitas” por terem práticas sexuais “nefandas” para a tradição católica, como sexo oral ou anal, mesmo entre homens e mulheres casados, ela tinha por sobrenome “Manicongo”, corruptela de “Mwene Congo”, literalmente, senhor/soberano do Congo.

Poderia ser apenas mais uma pessoa oriunda da região, porém estudos de Mott nos arquivos da Torre do Tombo ainda não encontraram outra com o mesmo sobrenome, que era um título dos governantes do reino, ou seja, ela de fato poderia ter sido membro da monarquia. Seria Xica uma rainha de fato?

O racismo é indissociável do sexismo e do classismo que hierarquiza corpos como melhores e piores, desejáveis e abjetos. Esse imaginário impediu por muito tempo que uma mulher trans ou travesti, em nosso linguajar contemporâneo, pudesse ser reconhecida sequer como digna de humanidade, tampouco vista como cidadã. Haver pessoas trans como sujeitos de direito produz tensões na ordem social estabelecida, exige a mudança de paradigmas que tornam inimaginável tê-las como parte de alguma nobreza.

Em meio ao ódio e à repulsa, misturados com desejo, que nos cercam outrora e atualmente, um outro imaginário sobre a população trans tem sido tecido. Demandas por direitos fundamentais, como o de ir e vir; de ter reconhecido o seu nome e gênero; de acesso à educação, ao mercado de trabalho formal e a banheiros de uso comum; e à vida; outrora ignorados, têm sido reconhecidas e ganharam a cena social e política em nível global.

Entretanto, enfrentamos concepções que prejudicam a resolução de problemas básicos causados pela transfobia. Apesar dos avanços, mulheres trans e travestis, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias seguem sendo acossados, inclusive tendo conquistas recentes sendo retiradas, como vemos acontecendo nos Estados Unidos sob a Presidência de Donald Trump e acompanhado por Elon Musk, que não aceita a própria filha trans.

A informação e a razão jamais serão suficientes para mudarem esse cenário nefasto se não se aliarem à afetividade e à arte. Mais do que com palavras, a cidadania se faz por imagens. Precisamos de novas representações e, sobretudo, novas dramaturgias para que um novo imaginário social, mais incluso, possibilite a valorização da nossa diversidade para além dos discursos.

É nesse sentido que coloco em um lugar especial o desfile da Tuiuti acerca de Xica Manicongo, que a associa com uma pombagira, o qual não se reduz a um mero embate ideológico, à minha identidade de gênero, ao meu trabalho de pesquisadora ou à minha prática religiosa. Ele é um elemento central para a internalização de valores culturais que seriam básicos, não fosse o preconceito: de que todas as pessoas são pessoas; que ninguém é superior ou inferior a ninguém por causa de características pessoais; que a liberdade não pode ser um privilégio, mas uma condição do ser.

Transpor Xica Manicongo para a cena carnavalesca é mais que um ato de reparação histórica e justiça social, é, sobretudo, a possibilidade de sedimentar uma memória coletiva da própria transgeneridade no pensamento social brasileiro para além do papel aglutinador que a personagem já trouxe para a comunidade trans. Um lição não somente para o Brasil, mas para toda a humanidade.

TENDÊNCIAS / DEBATES

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