Por que aceitamos absurdos nas novelas do streaming? – 15/02/2025 – Thiago Stivaletti


“Mania de Você”, capítulo 1, cena 5: Molina (Rodrigo Lombardi) e Mércia (Adriana Esteves) envenenam Alfredo (Fábio Assunção) dentro de um hospital. Arrastam o corpo numa maca por um corredor em que não passa nenhum enfermeiro e o depositam numa gaveta estilo IML dentro do hospital. Ninguém vê nada. Nas redes, o público faz piada com o absurdo da cena.

“Beleza Fatal”, capítulo 1, cena 21: Os cirurgiões Rog (Marcelo Serrado) e Benjamin (Caio Blat) fazem uma lipo em Rebeca (Fernanda Marques) sem a ajuda de nenhum enfermeiro ou assistente. Só assim eles conseguem encobrir a operação, que termina mais tarde com a morte da moça. Nas redes, o público prefere falar das maldades da vilã Lola (Camila Pitanga) na primeira semana da novela da Max.

Trago a comparação entre as duas cenas porque parece haver hoje uma diferença clara de recepção do público entre as longas e tradicionais novelas da Globo e a novidade do momento: as novelas do streaming. São situações parecidas, com absurdos de roteiro e direção parecidos. Mas a primeira foi imediatamente achincalhada nas redes, enquanto a gafe da segunda passou mais batida.

Da mesma forma, algo me diz que a trama de “Pedaço de Mim”, da Netflix, com a protagonista grávida ao mesmo tempo de dois homens diferentes, teria tomado pedrada como algo patético e absurdo se tivesse sido escrita hoje pela Glória Perez para o horário das 18h. No streaming, no entanto, foi sucesso de público e crítica. Onde está a diferença?

O frango do goleiro

Minha primeira hipótese é a teoria do brinquedo novo. Novela no streaming é novidade, e o público ainda está curioso para ver aonde essa brincadeira vai dar. De quebra, um público que não tem mais o hábito da TV aberta está voltando a um velho costume (ver novela) no esquema “on demand”, sem intervalo, no seu ritmo.

Há muitos outros absurdos em “Beleza Fatal” –a forçação de barra dos últimos capítulos passou por Elvira (Giovanna Antonelli), do nada promovida a vidente de Lola, do nada gozando de sua cega confiança. Mas a atmosfera camp, exagerada, quase cafona da novela faz aumentar o nosso grau de tolerância a essas coisas.

Já a Globo, que sempre teve um esforço em dar às suas novelas uma embalagem mais chique, hoje sofre justamente porque o público parece mais interessado em novelas de pegada quase infantil, com uma vilã de história em quadrinhos.

Segunda hipótese: a novela na TV aberta exibe o seu capítulo simultaneamente para milhares de telas. Mesmo que haja depois um consumo no Globoplay, são muitas pessoas vendo, comentando e criticando aquele capítulo ao mesmo tempo. Nas redes, isso significa uma opinião pública formada muito rapidamente. É como no futebol: um frango tomado pelo goleiro ao vivo dói muito mais do que vê-lo domingo à noite no Fantástico.

Queremos novelão

No caso de “Mania de Você”, a má impressão do primeiro capítulo só se consolidou ao longo das semanas seguintes. Mesmo que a audiência tenha se recuperado um pouco nos últimos tempos, a má repercussão da novela de João Emanuel Carneiro se consolidou.

Já “Beleza Fatal” beneficiou-se de uma curiosidade pelo primeiro folhetim da Max, impulsionada por uma campanha eficaz nas redes. Memes criados pelo próprio streaming criaram a sensação de que a novela “pegou” entre os noveleiros, e o que era apenas buzz foi se tornando mais concreto.

Mas uma coisa é fato. “Beleza Fatal” está sendo chamada de “novelão” no melhor sentido do termo: aquele folhetim tradicional com mocinha e vilã bem marcados, no qual sabemos exatamente para quem torcer desde o início. A mesma palavra foi usada para definir “Avenida Brasil”, “Celebridade” e outras tramas que marcaram o público. Se a Globo quer voltar a conquistar o espectador, é bom voltar a fazer novela com cara de novela. Oremos por “Vale Tudo”.

Foto de Thiago Stivaletti

Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, TV e streaming. Foi repórter na Folha de S.Paulo e colunista do UOL. Como roteirista, escreveu para o Vídeo Show (Globo) e o TVZ (Multishow)



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