Se uma democracia não se protege, morre


Eis aí. A sociedade aberta, como sabemos, tem seus inimigos. Cumpre-nos indagar e responder com clareza se devemos condescender com os métodos daqueles que, sob o pretexto de externar suas insatisfações e descontentamentos, decidem destruí-la, instrumentalizando as próprias garantias que o regime oferece, de modo que a democracia se transforma na causa de sua própria destruição. A resposta é clara: os que escolhem esse caminho incidem em “crime contra a ordem democrática” e devem arcar com as consequências. “Isso valeria, Reinaldo, para o caso de uma iminente revolução socialista?” Respondo assim: se e quando isso acontecer, vocês me perguntem, e minha resposta será claríssima. Por ora, o que se tem pela frente, aqui e mundo afora, é a ameaça fascistoide. E isso digo eu, é claro!, não o procurador-geral.

Gonet escreve ainda:
“O vilipêndio aos princípios democráticos mais elementares, sobretudo com uso da força bruta ou com a sua ameaça, atinge bens essenciais à estrutura da comunidade política. Se o respeito à dignidade da pessoa é a causa final da sociedade arquitetada pela Constituição em vigor, o modelo democrático é a sua causa eficiente. Daí a sua proteção em grau máximo, sancionada penalmente.”

Lembrei-me agora, com engulhos, de algumas penas brutas que não vão identificar o Aristóteles encoberto no texto do Gonet: a “causa final” da Constituição — aquilo que se quer, a razão por que existe — é a “dignidade da pessoa”, e sua “causa eficiente”, seu elemento criador, é o modelo democrático. Assim, há de se concluir que o ato de vulnerar a democracia constitui-se, por si mesmo, num ataque à dignidade da pessoa humana. A “proteção em grau máximo” da democracia pede penas severas.

Na sequência, Gonet lembra que os Poderes, em sua convivência necessariamente harmônica, podem-se estranhar às vezes, mas existe o nefando, o abominável, o execrável — palavras minhas essas, escritas assim pelo excelente procurador-geral:
“Não há ofensa institucionalmente mais grave à democracia, entretanto, do que a interrupção do processo mesmo de ajustes inerentes ao sistema, pelo impedimento da atuação de qualquer dos Poderes, sobretudo por meio da força, não autorizada constitucionalmente. A gravidade é tal que, diferentemente do que ocorre em outras hipóteses de dissonância constitucional, nesse caso, o legislador tipifica a conduta como crime. Como também o faz quando o atentado baseado em violência se faz contra o regime democrático em si.”

E, bem, o que a peça de 272 páginas de Gonet expõe é a ação de uma organização criminosa que tentou desferir um golpe de Estado. Ele sintetiza:
“Esta denúncia retrata acontecimentos de máxima relevância. que impende sejam expostos ao mais alto Tribunal do país. Aqui se relatam fatos protagonizados por um Presidente da República que forma com outros personagens civis e militares organização criminosa estruturada para impedir que o resultado da vontade popular expressa nas eleições presidenciais de 2022 fosse cumprida, implicando a continuidade no Poder sem o assentimento regular do sufrágio universal.
A organização tinha por líderes o próprio Presidente da República e o seu candidato a Vice-Presidente, o General Braga Neto. Ambos aceitaram, estimularam, e realizaram atos tipificados na legislação penal de atentado contra o bem jurídico da existência e independência dos poderes e do Estado de Direito democrático”

Gonet, já destaquei no artigo anterior, demonstra que a arquitetura da destruição da democracia não começou na reta final do mandato de Bolsonaro. Vinha de longe, com mais ênfase a partir de 2021. Em trecho especialmente feliz, lê-se:
“Quando um Presidente da República, que é a autoridade suprema das Forças Armadas (art. 142, caput, da Constituição), reúne a cúpula dessas Forças para expor planejamento minuciosamente concebido para romper com a ordem constitucional, tem-se ato de insurreição em curso, apenas ainda não consumado em toda a sua potencialidade danosa. O mesmo se dá quando, como aconteceu, o Ministro da Defesa expõe plano de golpe às três maiores autoridades militares das Forças Armadas, não para dar conta de providências imediatas de repressão contra o proponente do crime, mas para deles obter adesão. A situação mais se agravava, uma vez que um dos Comandantes militares, o da Marinha, se dispôs a acudir ao chamado”.





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