Decisão do STF para livrar Palocci desfaz conquistas da Lava Jato



Decisões cada vez mais frequentes do Supremo Tribunal Federal (STF) sob argumento de suspeita de conluio entre membros da força-tarefa da Lava Jato são um ponto central nas discussões para anular processos, condenações e provas obtidas na operação, alertam especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo. Segundo os advogados, as decisões colocam em risco o sistema de enfrentamento e combate à corrupção no país.

A divulgação da sentença, em 18 de fevereiro, coincidiu com a data em que a Procuradoria-Geral das República (PGR) denunciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 33 pessoas por um suposto planejamento de golpe de Estado, com os olhares da mídia, da cena política e da opinião pública voltados para a denúncia.

Para especialistas, a postura do STF poderá intensificar o desmonte na estrutura de combate à corrupção no Brasil, com a revisão de sentenças que envolvem figuras políticas e empresários de destaque, o que reforça a “sensação de impunidade”.

Segundo análises de especialistas, esse movimento não só compromete a efetividade do combate à corrupção, mas também poderá gerar um impacto significativo em novos processos ou investigações que possam caminhar nesse sentido.

“A revisão de condenações e a anulação de provas obtidas pela força-tarefa da Lava Jato levantam preocupações sobre o fortalecimento de instituições que combatem a corrupção no país. Minar a estrutura da Lava Jato, que por anos foi vista como um marco no enfrentamento da impunidade, vai resultar em um enfraquecimento do sistema judiciário e um retrocesso na luta contra a corrupção, prejudicando a confiança da população nas instituições responsáveis pela aplicação da lei”, alerta o advogado Márcio Nunes, especialista em Direito Público.

Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, essas decisões do STF representam um duro golpe contra a operação Lava Jato e seus ex-integrantes, mas com muitos efeitos colaterais.

“As anulações não negam materialmente aos casos de corrupção. O que as anulações fazem é se dedicarem a entender que houve parcialidade, que havia um conluio, no entendimento do Toffoli, entre os juízes e procuradores da Lava Jato, e isso resultava numa parcialidade que deveria anular o julgamento. Encontraram essa medida tangencial ao mérito para anular tudo”, avalia.

Marsiglia pondera que não se está anulando apenas as provas, mas toda a Lava Jato. Com isso, há o risco de se comprometer futuras ações de enfrentamento à corrupção. “Com o deferimento ou com a decisão sobre a parcialidade do juiz, por conta dessa alegação, passaram a emprestar essa parcialidade a todos os demais réus [da Lava Jato]. O caso do Palocci é basicamente isso”, alerta o especialista, ao considerar que o mesmo tem ocorrido com outros acusados.

Em seu despacho no processo de Palocci, o ministro do STF cita que se nota “um padrão de conduta de determinados procuradores integrantes da Força Tarefa da Lava Jato, bem como de certos magistrados que ignoraram o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a própria institucionalidade para garantir seus objetivos – pessoais e políticos -, o que não se pode admitir em um Estado Democrático de Direito”.

O ministro fala da existência de ilegalidades e violação dos direitos fundamentais de Palocci, o que seria incompatível com a manutenção de sua condenação ou qualquer ato processual subsequente.

“Mas e os milhões desviados e apreendidos, resgatados, as delações, as confissões de crimes, os acordos de delação premiada e de leniência, isso tudo não comprova os atos de corrupção? Isso não deve ser investigado e punido?”, alerta Márcio Nunes.

A decisão em benefício de Palocci se baseia, segundo Toffoli, em provas de um suposto conluio entre o ex-juiz federal Sergio Moro (União), atualmente senador pelo Paraná, e procuradores da força-tarefa. Ela usa como base informações e dados obtidos na operação Spoofing.

Reversões de sentenças não dizem que não houve corrupção

Apesar de não evidenciar a inocência de Palocci, a sentença avalia que o ex-ministro teria sido vítima de manipulações processuais que violaram o devido processo legal, o direito ao contraditório e à ampla defesa. O entendimento segue a linha de outras anulações de processos da Lava Jato que vêm se intensificando nos últimos quatro anos, como nos casos de Marcelo Odebrecht e José Adelmário Pinheiro (Léo Pinheiro), cujas condenações também foram revogadas pela Corte.

Para o advogado Luiz Augusto Módolo, quando o STF começou a tomar decisões contrárias à Lava Jato “a Corte ainda tinha crédito”. “O falecido ministro Teori Zavascki, relator da operação no STF, mostrou em vida que era juiz sério e deu esperança ao país.

O STF, começando principalmente pela notória decisão que mudou a competência do processo de Lula, foi aos poucos desidratando a Lava Jato”, avalia.

Ao tratar do hackeamento de supostas conversas entre os membros da força-tarefa, Módolo questiona se elas foram periciadas. Na visão do advogado, a “impressão [é] que o STF até agradeceu pela oportunidade de desmontar com respaldo a operação”.

Para ele, se ignorar que o hackeamento foi um crime grave classificado como espionagem de autoridades do Estado brasileiro e que as provas decorridas dela são imprestáveis por ilícitas, proibidas pela Constituição, elas não deveriam servir para beneficiar um réu.

“Imaginemos que a testemunha de um caso é sequestrada e torturada para dizer ou não algo em Juízo beneficiando o acusado. É a mesma coisa. O Estado não pode chancelar este tipo de ilícito”, alerta.

Moro e Dallagnol criticam decisão de Toffoli que anulou condenações de Palocci

Ao comentar sobre o caso na tribuna do Senado, nesta quarta-feira (19), Moro disse que a decisão de Toffoli “ofende o bom senso jurídico”. Ele lembrou que Palocci é “réu confesso, que fez acordo de colaboração e devolveu milhões de reais roubados”.

“O condenado confessa os crimes, celebra acordo de colaboração, devolve aos cofres públicos dinheiro que afirma ser produto de suborno e, anos depois, tudo é anulado por ministro do STF com base em fantasiosa nulidade. Depois reclama-se de ‘conversa de boteco’ quando o Brasil despenca no ranking de corrupção da Transparência Internacional. A prevenção e o combate à corrupção foram esvaziados pelo Governo Lula e seus aliados”, escreveu o senador em uma publicação no X.

Dallagnol ironizou a decisão de Toffoli: “O timing é excelente”. “Tirando o fato absurdo que é a anulação em si, que só repete o que Toffoli já vem fazendo há anos em casos da Lava Jato, garantindo a blindagem e a impunidade de sempre para corruptos confessos, a anulação dos processos contra Palocci um dia depois da PGR oferecer denúncia contra Bolsonaro pela trama do golpe diz tudo o que precisamos saber sobre o STF e o Brasil atuais: não há mais lei no Brasil, nem respeito à Constituição”, disse o ex-procurador e ex-deputado em publicação no X.

“Há apenas o exercício puro do poder, o uso da força contra adversários e inimigos políticos e a atividade política despudorada de ministros que sequer têm vergonha de admitir para a imprensa que sim, são políticos, quando essa prática configura justamente crime de responsabilidade passível de impeachment. República de bananas é pouco”, afirmou ainda Dallagnol na rede social.

Outros nomes que tiveram processos anulados ou sentenças reformadas na Lava Jato

Entre os principais nomes que tiveram sentenças reformadas ou anuladas na Lava Jato está o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em 2021, o plenário do STF decidiu, por 8 votos a 3, pela incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para avaliar as ações penais que tinham Lula como réu, anulando todas as suas condenações. Lula ficou preso em Curitiba por 580 dias e foi liberado em novembro de 2019. As anulações dos processos contra Lula o tornaram apto a ser candidato à presidência da República e ele venceu as eleições de 2022.

Além dele, integram a lista dos que tiveram condenações anuladas ou penas revistas na Lava Jato:

  • Eduardo Cunha;
  • José Dirceu;
  • Delúbio Soares;
  • Luiz Fernando Pezão;
  • Sérgio Cabral;
  • Aldemir Bendine;
  • Henrique Eduardo Alves;
  • João Vaccari Neto;
  • André Vargas.
  • Marcelo Odebrecht, Léo Pinheiro.

Despencar no ranking do combate à corrupção não surpreende, diz Sergio Moro

Em entrevista à Gazeta do Povo na semana passada, antes da decisão de Toffoli em favor de Palocci, Sergio Moro afirmou que o Brasil ter despencado no ranking do combate à corrupção nos últimos anos não é uma novidade nem o surpreendeu. Ele fazia referência a divulgação recente da Transparência Internacional.

“Avançamos muito durante a Lava Jato. Os processos aconteciam, as consequências das condenações, as prisões, o dinheiro devolvido. Teve uma percepção de que o Brasil iria vencer essa etapa da corrupção endêmica. Infelizmente se abandonou a agenda anticorrupção no Brasil”, disse.

Segundo o senador, além do desmonte das estruturas anticorrupção, há manifestações hostis a essa agenda. Ele afirma também que agentes da lei “foram perseguidos”.

“Foi o caso do Deltan [Dallagnol, ex-procurador-geral da República da Lava Jato e que teve seu mandato como deputado federal cassado], teve a tentativa de cassação do meu mandato, foi o caso dos desembargadores do TRF-4 em Porto Alegre que ficaram suspensos, depois voltaram com a decisão revista pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Mas, nesse ambiente de hostilidade aos agentes da lei, é muito difícil avançar [no enfrentamento à corrupção]”, avalia.

Em 2024, o Brasil atingiu sua pior posição e nota no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional. Os dados foram divulgados há duas semanas. O Brasil registrou 34 pontos, em uma escala que vai de 0 a 100. O Brasil ficou em 107º lugar entre 180 países.

O desempenho representa uma queda de dois pontos e três posições em relação ao ano anterior e uma perda de nove pontos e 38 posições em comparação com os melhores resultados do país, em 2012 e 2014, ano em que teve início a Lava Jato.

Para advogado, STF acabou com a Lava Jato e “salgou o chão no qual ela crescia”

Na decisão proferida pelo STF nesta semana, a defesa de Palocci solicitou à Corte a extensão dos efeitos de um julgamento anterior que beneficiou Marcelo Odebrecht, decisão essa concedida em maio de 2024. No caso do empresário, Toffoli usou o argumento que houve articulações entre procuradores da Lava Jato e o então magistrado Sergio Moro, o que comprometeria a imparcialidade do processo e feria o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Luiz Augusto Módolo avalia que há nas decisões um claro recado para juízes e procuradores que ousem “tocar em processos semelhantes”. “Que ele será espionado, desmoralizado, se possível expulso da carreira e todos os réus investigados, como Lula, Palocci e Sérgio Cabral, poderão voltar à vida pública como se nada tivesse acontecido. Alguns até receberão a presidência da República. O STF não apenas acabou com a Lava Jato como fez questão de salgar o chão no qual ela crescia, para que nada parecido ouse nascer”, critica.

Principais pontos da decisão do STF em benefício de Palocci

  • Suposto conluio entre Moro e a força-tarefa: a decisão destacou evidências de troca de mensagens entre Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato, demonstrando um alinhamento para influenciar o curso das investigações e condenações. Mensagens obtidas pela operação Spoofing mostram, segundo Dias Toffoli, que Moro orientava a atuação da acusação, mas também cobrava medidas para prejudicar os réus e forçá-los a delatar nomes específicos.
  • Pressão ilegal para delatar: a decisão considera que a prisão de Palocci, a imposição de medidas cautelares extremas e a inclusão de seus familiares em bloqueios financeiros foram instrumentos de coerção para forçá-lo a firmar um acordo de delação premiada. Segundo Toffoli, tratou-se de “um verdadeiro abuso do poder punitivo do Estado”.
  • Parcialidade e interesses políticos: o ministro reafirmou que a Lava Jato teve um viés político, citando a utilização da operação para atingir adversários políticos, especialmenteo Luiz Inácio Lula da Silva, à época ex-presidente, e o Partido dos Trabalhadores. Um dos episódios mais emblemáticos teria sido a divulgação, seis dias antes da eleição de 2018, do depoimento de Palocci, na época sob sigilo, com o objetivo de influenciar o pleito, defende a decisão.
  • Violação da cadeia de custódia das provas: a decisão também pontua a obtenção de elementos de prova sem respeito à cadeia de custódia e a manipulação de provas para sustentar acusações.
  • Nulidade dos processos e impacto jurídico: a anulação das ações penais contra Palocci reforça a jurisprudência que vê a Lava Jato como um esquema de abusos processuais e perseguição política. A decisão não invalida o acordo de delação firmado por Palocci, mas o impede de produzir efeitos contra ele em processos derivados da Lava Jato.



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