Em ‘O Brutalista’, o poder do dinheiro enfrenta o espírito – 20/02/2025 – João Pereira Coutinho


O imigrante chega aos Estados Unidos e a Estátua da Liberdade o recebe: quantas vezes o cinema americano se dedicou a esse encontro?

Várias, várias: de Charlie Chaplin a Elia Kazan, de Sergio Leone a Francis Ford Coppola, a estátua foi ganhando estatuto promissor e mítico. “Dai-me os vossos cansados, os vossos pobres”, lê-se na inscrição do pedestal, “as vossas massas encurraladas ansiando por respirar livres”. A estátua está ali para erguer a sua lâmpada “ao lado da porta dourada”.

“O Brutalista”, de Brady Corbet, seguramente o grande filme do ano, rompe com essa tradição. Temos o imigrante, cansado e pobre. Temos a estátua, com sua lâmpada. Mas agora ela é filmada de ponta-cabeça, como prenúncio de uma promessa sob ameaça.

O imigrante é László Tóth —notável Adrian Brody—, um judeu sobrevivente do Holocausto. Saberemos depois que László é também um arquiteto húngaro de renome, que deixou obra em Budapeste.

Separado da mulher e da sobrinha durante a guerra, ele cruza o Atlântico em busca de uma vida nova, aguardando pelo reencontro com a família.

Um primo o recebe –”Atilla”, nome que é todo um programa– e László percebe que o primo mudou de sobrenome, de religião, até de passado. Sobreviver na América é um ato de autocriação permanente onde a velha identidade não tem lugar.

Mas László não pode abandonar essa identidade. A sua arte, os traumas do campo de concentração, a longa espera pela mulher, tudo isso o mantém ligado à velha Europa.

Os primos vivem em universos distintos, com valores distintos, e a ruptura é uma questão de tempo. E de temperamento.

László, novamente à deriva, sobrevive com trabalhos menores, existindo nas margens do sonho americano. Até ser resgatado por Harrison Van Buren, vivido por Guy Pearce, um milionário que lhe concede uma segunda oportunidade ao saber que László é um artista reconhecido.

Van Buren parece saído das páginas de Thorstein Veblen na sua “Teoria da Classe Ociosa”: ele admira a arte e os artistas, os livros e os criadores, porque as rivalidades da ostentação —o “consumo conspícuo” de que falava Veblen— a isso obrigam.

László é um adereço raro para ser exibido à família e aos amigos. Será também o autor de um projeto arquitetônico para imortalizar a matriarca da família Van Buren.

A construção avança. E o conflito imemorial entre o poder do dinheiro e o poder do espírito ressurgem em toda sua força primitiva.

Como o filósofo René Girard ensinou, existe na admiração de Van Buren um desejo mimético pela liberdade e pela criatividade de László. “As nossas conversas são intelectualmente estimulantes”, diz ele, como se avaliasse um objeto de luxo ou um terreno valioso.

Mas o desejo, ensinava também Girard, é facilmente convertido em inveja: nem todo dinheiro do mundo pode comprar a liberdade e a criatividade de László. O ressentimento do admirador converte o objeto desejado em bode sacrificial.

Assistindo a “O Brutalista”, não pude deixar de pensar no igualmente magistral “Mank”, de David Fincher. Falo da relação entre o roteirista Herman Mankiewicz (Gary Oldman, no filme) e o magnata William Randolph Hearst (Charles Dance), que o julga possuir e controlar.

Para ilustrar essa superioridade, Hearst relembra a Mankiewicz a parábola do macaco e do tocador de realejo. O macaco pensa que é a estrela do show. Mas ele se esquece que, sem o tocador de realejo, o público não estaria ali para o ver dançar.

Tradução: o poder e o dinheiro são mais importantes que as habilidades simiescas do artista. Pelo menos, os boçais pensam que sim.

Mas é uma ilusão de curto alcance. Na história e na memória, será o macaco, e não o tocador de realejo, que será lembrado e celebrado. Serão Henry Mankiewicz —escritor de “Cidadão Kane”— e László Tóth —na sua metáfora de concreto, cujo significado só será revelado no final— que terão a última palavra.


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