Denúncia omite falas de Cid que podem inocentar Bolsonaro



A denúncia do procurador-geral da República, Paulo Gonet, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), por suposta tentativa de golpe, traz acusações que vão além das conclusões da investigação da Polícia Federal e ainda contrastam com declarações da delação premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, principal base para a elucidação do caso.

Gonet aponta o envolvimento direto ou indireto de Bolsonaro em alguns episódios cruciais, como o monitoramento e o plano para prender ou matar o ministro Alexandre de Moraes; a avaliação de minutas de um decreto que poderia impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT); o suporte e o financiamento da manifestação em frente ao Quartel General do Exército; e, por fim, o conhecimento ou o estímulo às invasões de 8 de janeiro de 2023.

Ao longo da denúncia, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresenta uma versão que suprime falas de Cid que esclarecem, contextualizam ou trazem nuances, principalmente sobre a participação e disposição de Bolsonaro e militares de alta patente para dar um golpe.

Em tese, o ex-presidente só pode ser condenado pelos crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito se a acusação comprovar que ele tentou depor o governo legitimamente constituído e impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais por meio ou com o emprego de violência ou grave ameaça.

Pelo direito penal vigente no país, a condenação só é possível ainda se, nessas tentativas, for comprovado que ele iniciou atos executórios, isto é, ações concretas para depor o novo governo ou impedir o exercício dos poderes. A rigor, não se pune alguém se, por qualquer motivo, a pessoa tenha desistido voluntariamente dessas ações antes de iniciadas, ainda que as tenha cogitado, inclusive discutindo-as com outras pessoas, e mesmo as planejado.

Nos depoimentos, Cid conta que Bolsonaro era pressionado por militares “mais ouriçados” para dar um golpe. Em 7 de dezembro de 2022, o ex-presidente chegou a submeter aos comandantes das Forças Armadas uma minuta de decreto, para impor estado de sítio ou de defesa sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para rever o resultado das eleições. Mas como havia resistência do Alto Comando do Exército e do comandante Freire Gomes, acabou recuando.

Mauro Cid disse que Bolsonaro alimentava, até o fim do mandato, a esperança de que uma fraude fosse descoberta nas urnas eletrônicas. Mas, como nada foi identificado, não encontrou apoio nem justificativa para decretar uma intervenção sobre o TSE.

“Tanto que eu falei: ‘mas, com certeza, não vai acontecer nada’, dentro daquela ideia de ele assinar. Até porque eu estava em contato com o general Freire Gomes, e dificilmente ele iria assinar alguma coisa, a gente [não ia] deixar ele assinar alguma coisa, pelo menos sem a ciência do general… sem a ciência do general Freire Gomes, a ciência e aquiescência. Porque uma coisa que eu sempre falei e tá nas minhas conversas foi que não foi encontrado fraude nas urnas, por mais que a busca foi incessante pra encontrar, e que o Exército não ia apoiar. O Exército não ia apoiar, o Exército, instituição, não ia apoiar nada”, afirmou Cid em depoimento.

Cid põe em dúvida acusação de que Bolsonaro aprovou execução de Moraes

A investigação da PF e a denúncia da PGR narram que, em 15 de dezembro de 2022, um grupo de militares das Forças Especiais do Exército – nem todos ainda identificados – saiu a campo para seguir Alexandre de Moraes em vias de Brasília, inclusive perto de sua residência. Documentos encontrados em celulares e computadores indicam que o objetivo era sua “neutralização”, ou seja, sua prisão ou execução, uma vez que ele seria um obstáculo para a revisão do resultado eleitoral que deu a Lula a vitória sobre Bolsonaro na disputa presidencial.

A PGR afirma, sem provas diretas, que Bolsonaro sabia e teria aprovado esse plano, chamado “Punhal Verde e Amarelo”. Para sustentar essa afirmação, narra que três cópias foram impressas pelo general Mario Fernandes no Palácio do Planalto em 6 de dezembro de 2022, num momento em que Bolsonaro também estava no edifício. Mario Fernandes é descrito por Mauro Cid como um dos principais militares que pressionavam Bolsonaro para dar um golpe. Ele também trabalhava no palácio, como secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência.

Gonet ainda cita uma mensagem de áudio de Mario Fernandes a Mauro Cid, em 8 de dezembro, com o seguinte teor: “durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas (…) aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades”.

A denúncia, então, conclui que “o áudio não deixa dúvidas de que a ação violenta era conhecida e autorizada por Jair Messias Bolsonaro, que esperava a sua execução ainda no mês de dezembro. O grupo planejava agir com a maior brevidade possível, a fim de impedir a assunção do Poder pelo novo governo eleito”.

Em seus últimos dois depoimentos, no entanto, Mauro Cid deixa claro que, ao ouvir a mensagem de Mario Fernandes, entendeu que, na conversa com Bolsonaro, ele estava se referindo à possibilidade de o ex-presidente assinar o decreto que concretizaria o golpe, e não na aprovação do plano para prender ou matar Moraes.

“Essa mensagem que ele me mandou, eu realmente, eu não posso confirmar se ele estava falando, efetivamente, que ia ter uma ação ou queria que o presidente decretasse o estado de sítio ou assinasse aquela minuta que foi levada pra ele, para que o Exército pudesse fazer uma coisa”, disse Mauro Cid em depoimento prestado a Moraes e Gonet em 21 de novembro de 2024 – o interrogatório foi realizado após a entrega do relatório final do inquérito pela PF.

Neste mesmo depoimento, Gonet ainda perguntou a Cid “o que poderia acontecer entre o dia 12 até o dia 30?”, numa referência direta às falas de Mario Fernandes sobre a conversa com Bolsonaro. “Então, o que podia acontecer é a assinatura do decreto, do decreto, da minuta, o estado de sítio; era isso. Porque era o que estava sendo discutido”, respondeu Cid.

Moraes parece ter entendido, pois logo em seguida afirmou: “porque, depois, porque, depois, haveria a troca de comando [das Forças Armadas]. Essa era a preocupação?”. Cid então respondeu: “isso. Então, assim, tinha que assinar”.

Em novo depoimento, em 5 de dezembro do ano passado, Cid disse ao delegado Fabio Shor que “eu não tenho ciência se o presidente sabia ou não do plano que foi tratado”. “Do Punhal Verde Amarelo e se o general Mario levou esse plano para ele ter ciência ou não”, acrescentou.

Cid: Bolsonaro queria monitorar Moraes por suspeita de encontros com Mourão

A PGR registra que, do início até o meio de dezembro de 2022, Cid trocou mensagens com militares das Forças Especiais para monitorar deslocamentos de Moraes, com o objetivo de preparar a operação que iria prendê-lo ou matá-lo, no dia 15 – essa operação, chamada “Copa 2022”, acabou abortada, durante sua execução, porque, segundo a PGR, Bolsonaro desistiu de assinar o decreto do golpe, ante a resistência do então comandante do Exército, Freire Gomes.

Nos depoimentos, Cid disse que não sabia que o objetivo era a emboscada do ministro. “Mas, realmente eu não… eu não tinha noção que podia ser algo grave assim, de sequestro, assassinato ou, sei lá, até que ponto eles poderiam… eles poderiam chegar”.

Na denúncia, a PGR diz que Moraes foi monitorado, em dezembro, a mando de Bolsonaro. Mas, nos depoimentos, Cid deixa claro que o ex-presidente só pediu para monitorar o ministro após a operação “Copa 2022”, realizada em 15 de dezembro, que teria como objetivo prender ou matar Moraes. Mais: segundo Cid, o motivo era outro: Bolsonaro queria saber se Moraes estava se encontrando com o então vice-presidente Hamilton Mourão em São Paulo.

No depoimento prestado a Moraes em novembro do ano passado, Cid disse ao ministro: “a informação era que seria, porque o senhor iria se encontrar ou com o general Mourão ou alguém do governo dele. E o presidente estava meio nervoso com isso aí, né, então ele queria saber. Essa foi a informação que eu recebi. E novamente eu usei o coronel [Marcelo] Câmara, eu pedi ao coronel Câmara pra tentar colher essa informação”.

A investigação descobriu que o coronel Marcelo Câmara colhia informações sobre a agenda de Moraes, em dezembro de 2022, com um juiz que trabalhava no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que era presidido pelo ministro à época.

No depoimento de Cid, Moraes não informou se de fato encontrou-se com Mourão naquela época. Só disse que, para saber isso, bastaria aos auxiliares de Bolsonaro consultar a agenda do vice-presidente, que informava que ele não estaria em São Paulo de 15 a 30 de dezembro.

Cid respondeu que muitas informações chegavam ao celular de Bolsonaro sobre supostos encontros de Moraes com aliados do ex-presidente, como o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas. “Quando ele recebia, pelo perfil dele, já ficava nervoso, irritado e mandava verificar”, contou Mauro Cid.

Cid diz que atos de 8 de Janeiro foram “surpresa para todo mundo”

Em seus depoimentos, Cid afirma que os atos de 8 de Janeiro, tratados pela PF, Gonet e Moraes como a tentativa final de consumar um golpe de Estado, foram “uma surpresa”. Na denúncia, a PGR demonstra que, nos últimos meses de 2022, alguns dos militares que mais pressionavam Bolsonaro a dar um golpe mantinham contato com líderes do acampamento em frente ao QG do Exército, montado para pressionar as Forças Armadas a intervir na sucessão.

Cid afirmou na delação que Bolsonaro queria que os manifestantes ficassem mobilizados caso fosse encontrada alguma fraude na urna eletrônica. Mas disse que, no fim de dezembro, quando Bolsonaro deixou o país e viajou aos Estados Unidos – o que indica que havia desistido do suposto golpe – a manifestação começou a perder força. Nas mensagens enviadas a militares e também nos depoimentos, Cid indicou que, em seu entender, não iria “rolar nada” – ou seja, Bolsonaro não iria decretar um estado de defesa ou de sítio para impedir a posse de Lula.

“A partir desse momento que já foi chegando o final do ano né, ele [Braga Netto] continuava indo lá, mas o pessoal interno ali já foi esmorecendo, digamos assim. Os mais ativos, né, digamos assim, já foram esmorecendo, foram sumindo, até que, dia 30, o presidente embarcou, né? A partir ali do final do ano, aí, vem, depois do Natal, ali, já tava, já tava morto qualquer coisa que poderia acontecer. Pelo menos eu não me lembro de nenhuma movimentação nem nenhuma reunião assim mais, mais… Já estava um clima de desânimo mesmo”, disse o ex-ajudante de ordens no depoimento a Moraes em 19 de novembro do ano passado.

Moraes ainda perguntou a Cid se “as Forças [Armadas], o senhor, as pessoas do governo sabiam do dia 8”. “Não, senhor”, respondeu Cid a Moraes. O ministro insistiu: “eu não digo nem das consequências do dia 8, mas sabiam que algo ia acontecer no dia 8?” Cid respondeu mais uma vez: “Não, senhor, ministro. O dia 8 foi uma surpresa para todo mundo. Os militares estavam de férias”.

Mais adiante, ele disse que os manifestantes do 8 de janeiro “vieram de fora”.

“O dia 8 foi uma surpresa pra todo mundo. Os militares estavam todos de férias, eu já estava desligado, eu já estava de férias na casa do meu irmão [na Califórnia, nos EUA], realmente foi uma surpresa muito grande. Inclusive, ministro, até para complementar, o QG [do Exército], ele foi quase esvaziado depois da… É que eu morava ali, eu morava do lado da manifestação. E ali, a partir até do dia 29, 30, o negócio foi reduzindo bastante. Os caminhoneiros saíram todos. Eu lembro que, de duas em duas horas, tinha um buzinaço que eles faziam. Já não tinha mais caminhoneiro; foi reduzindo, reduzindo, reduzindo, que eu acho que, depois que o presidente saiu, foi praticamente esvaziado. O próprio depoimento do general que era do CMP [Comando Militar do Planalto], ele fala isso aí, estava esvaziado. E, depois, pro 8 de janeiro, as pessoas vieram de fora”, detalhou Cid.

Na investigação, a PF ainda destacou uma mensagem que Cid recebeu de um dos apoiadores de Bolsonaro, o tenente da reserva Aparecido Andrade Portela, em 26 de dezembro. “O pessoal que colaborou com a carne, estão me cobrando se vai ser feito mesmo o churrasco. Pois estão colocando em dúvida, a minha solicitação”. Para a PGR e a PF, ele queria saber de Cid se Bolsonaro ainda poderia dar um golpe, para dar uma satisfação a manifestantes que haviam contribuído financeiramente para o acampamento montado em frente ao QG do Exército.

No dia, Cid respondeu: “ponto de honra! Nada está acabado ainda da nossa parte. Se quiser eu falo com eles… para tirar da sua conta”.

No interrogatório de novembro, Cid explicou que Aparecido Andrade Portela frequentava o Palácio do Alvorada e tinha a simpatia de Bolsonaro. Mas era uma pessoa “humilde”, “muito simples”, “que não tinha dinheiro”, mas era ligado ao agro, que bancava parte da estrutura montada no acampamento. Gonet quis saber se Portela intermediava o financiamento.

“Não, acho que não, assim, porque ele não saía do Alvorada. Alguém financiava ele, mas ele não saía”, respondeu Cid. Ele falou que deu a resposta a Portela daquela maneira porque ele “ficava enchendo o saco”. “Então falei: ‘não, vai, vai, vai, tamo firme ainda, tamo na luta”. Depois, esclareceu que quis dizer “que o presidente ainda mantinha a chama acesa que pudesse acontecer alguma coisa” – referência à chance de encontrar fraude nas urnas.

“Ele tinha esperança que até o último momento, né – até um dia ele falou ‘papai do céu sempre ajudou a gente, vamos ver o que aparece aí’ –, que até o último momento fosse aparecer uma prova cabal que houve fraude nas urnas. E aí, sim, todo mundo visse, e aí teria aquele povo na rua, mobilização, as Forças Armadas. Então, eu acho que esse era o que passava na cabeça do presidente, assim, no tempo que eu estava com ele”, disse.

Aparecido Andrade Portela não foi denunciado com Bolsonaro e, segundo a PGR, sua suposta participação no caso “será objeto de diligências complementares”.



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