Ousadia de Ney Matogrosso é fio condutor de exposição – 23/02/2025 – Ilustrada


Para Ney Matogrosso, o Brasil encaretou durante os últimos 50 anos. “Apesar da ditadura, tínhamos muito mais liberdade do que agora”, fala o cantor, que ficou famoso por seus figurinos extravagantes e voz aguda a partir de 1972, quando estreou como vocalista dos Secos e Molhados. “Mas eu não estou preocupado se são caretas ou não. Eu sigo fazendo a minha coisa como eu sei fazer.”

Um intérprete de grandes clássicos da música brasileira e performer afiado ao vivo, Matogrosso é tema de uma exposição aberta na sexta-feira (21) no Museu da Imagem e Som, em São Paulo.

Na primeira sala da mostra, dividida por décadas, há um grande telão exibindo o clipe de “América do Sul”. O clipe da faixa mais famosa do primeiro álbum solo do artista, “Água do Céu – Pássaro”, de 1975, mostra Ney vestido como uma ave, cantando em seu timbre particular sobre a “força tropical” de seu continente.

O vídeo é um dos itens da exposição que mostram como Ney, hoje com 83 anos, trabalhou durante décadas com temas que continuam em discussão na sociedade brasileira. Em 2025, ele completa 50 anos de carreira solo, durante os quais levou ao palco questões como o erotismo, a não-conformidade de gênero e o pertencimento do Brasil a uma identidade latina.

Ao palco porque, antes de tudo, a mostra faz questão de destacar que as apresentações ao vivo são os mais importantes momentos da carreira do cantor. As quase 200 fotos na exposição mostram Ney se apresentando ao longo dos anos, desde as primeiras turnês com o Secos e Molhados.

Em agosto de 2024, ele fez o maior show de sua carreira, se apresentando para mais de 40 mil pessoas no Allianz Parque, em São Paulo. “A experiência foi interessante, mas eu não faria de novo. Sinto muita falta de ter contato próximo com o público”, diz o cantor.

“O Ney é um intérprete. Não era um cara que ficava num estúdio gravando um tempão, o lance dele sempre foi fazer shows”, fala André Sturm, diretor-geral do MIS e curador da exposição. Segundo Sturm, a ideia de fazer uma exposição sobre Matogrosso surgiu da sua própria admiração pelo artista, e calhou com a descoberta de que grande parte de seu acervo tinha sido doado ao Senac São Paulo.

Este acervo era composto, principalmente, de roupas e acessórios que o cantor usou em suas muitas turnês. A indumentária ganhou uma sala dedicada exclusivamente a ela na exposição, com mais de 20 manequins vestindo figurinos icônicos de Ney.

Segundo o próprio artista, a ideia de investir em fantasias exuberantes para o palco surgiu de uma vontade de permanecer anônimo no início de sua carreira no Secos e Molhados. “Eu achava que as roupas e as maquiagens criavam um personagem interessante pra eu transitar, mas também pra me proteger, porque eu ouvia dizer que artista não podia andar na rua”, fala.

Os figurinos continuaram quando Ney alçou voo solo, ora mais animalescos, como em “Água do Céu – Pássaro”, ora mais eróticos, como em “Bandido”, no ano seguinte. Seu quarto álbum, “Feitiço”, de 1978, teve o encarte proibido por conta de uma foto que mostrava o cantor nu.

Foi uma das muitas censuras que o cantor sofreu durante a época do regime militar. Ele recebia cartas do Cenimar, o Centro de Informações da Marinha, para que “não se excedesse” publicamente, em shows e programas de TV.

O próprio pai de Ney Matogrosso era sargento do Exército. O cantor deixou sua casa na cidade de Bela Vista, no Mato Grosso, aos 17 anos, porque o pai não aceitava que seu filho fosse gay. Mais tarde, ele enfrentaria essa mesma homofobia na esfera pública. Num dos primeiros shows do Secos e Molhados, chegou a ser chamado de “bicha” pela plateia. Ao fazer o show que abriu o primeiro Rock in Rio, em 1985, foi alvo de vaias e ovadas da plateia.

“Eu não sabia nem o que era ‘andrógino’ da primeira vez que me falaram”, diz o artista. “Mas eu sou aquilo, faz parte de mim.” Durante o governo Bolsonaro, Matogrosso chegou a receber críticas por nunca ter levado a bandeira do movimento gay. “A bandeira sou eu”, ele respondeu às cobranças em entrevista na época.

Apesar do estrelato, a vontade de permanecer relativamente anônimo que surgiu no começo dos Secos e Molhados prevaleceu. O artista sempre foi extremamente privado a respeito de sua vida pessoal, mesmo quando viveu relacionamentos de alto interesse público, como seu breve namoro com Cazuza.

O público finalmente terá mais chance de conhecer um pouco de sua privacidade com o lançamento do filme “Homem com H”, que tem estreia prevista para maio de 2025 nos cinemas. Na cinebiografia, produzida pela Paris Filmes, Ney é interpretado por Jesuíta Barbosa.

“É um filme muito impactante. Nas duas vezes que fui ver, todo mundo no cinema chorava”, diz Matogrosso. “Tem muito assunto delicado ali, está tudo posto às claras.”

Na exposição do MIS, há uma pequena sala dedicada ao filme, com materiais de pesquisa que foram usados na concepção do roteiro e fotos de bastidores. Nas imagens, Matogrosso, que participou do longa, aparece sentado durante as filmagens e na companhia do diretor e roteirista Esmir Filho. “A única condição que eu coloquei [para o filme] é que não poderiam mentir ao meu respeito. Tudo o que está ali no cinema é verdade”, fala o cantor.

Primoroso com a carreira, o artista também fez algumas sugestões quando visitou a exposição pela primeira vez, antes de sua abertura. “Eu queria colocar ele cantando ‘Pro Dia Nascer Feliz’, porque acho incrível a interpretação dele. Ele perguntou se poderíamos colocar um vídeo ao vivo específico e conseguimos achar”, fala André Sturm. “Ele também escolheu que a canção de abertura da exposição seria ‘Yolanda’, e fez algumas correções no figurino.”

Para Sturm, a força motriz da exposição era discutir como Ney Matogrosso, apesar de poder ter sido colocado em tantas caixas, é um artista inclassificável. “Ele tinha tudo pra ser carimbado, mas ele conseguiu fugir de todos os rótulos, se colocar como um artista popular. Que aparecia em televisão, em canal aberto, cujos shows enchiam de pessoas de todas as origens.”

Em seus 50 anos de carreira solo, Ney Matogrosso foi capaz de construir sua relevância em temas até hoje delicados com completa espontaneidade. Talvez por modéstia, talvez por simples naturalidade, ele resume: “São coisas que fazem parte do meu universo.”



Source link

Adicionar aos favoritos o Link permanente.