Chuvas no Sul: Povo de terreiro reclama de abandono – 23/02/2025 – Ambiente


“Acreditem vocês ou não, não sei se vocês têm religião, mas tive uma visão. Veio para mim muita água, muito suja. Vi meu terreiro todo tapado por ela. Falei para meu marido: ‘Vamos agora, vai acontecer alguma coisa’”, diz a ialorixá Beatriz Gonçalves, 63, conhecida em Porto Alegre como Mãe Bia de Yemanjá.

No dia da visão, no final de abril do ano passado, Mãe Bia levantou todos os objetos do seu terreiro e da sua casa —que fica no fundo do terreiro, como é tradicional no Rio Grande do Sul— por causa das chuvas. Moradora da Ilha da Pintada desde o nascimento, perto do rio Jacuí, adaptou-se a enchentes.

“A água não vai subir mais que 70 centímetros”, lembra ter pensado. Mas chegou ao nível do seu peito e ela precisou lutar contra a correnteza.

A essa altura, o babalorixá Valmir Martins, conhecido como Baba Diba de Yemanjá, presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul, observava que a chuva estava “diferente”. Dois dias antes, diz, ele havia sonhado que o fundo de sua casa, que fica em um morro, era um oceano.

“A chuva causou uma inquietação, e a gente começou a ver os resultados. A primeira coisa que me ocorreu foi: ‘E o nosso povo?’. Os terreiros são todos em periferia e em zona de risco, porque é o que sobrou para nós”, diz.

O Rio Grande do Sul é o estado com a maior concentração de terreiros de religiões de matriz africana do Brasil, segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o mais recente para esse dado. Conforme o Censo de 2022, o estado é a segunda unidade da federação com menor população autodeclarada preta ou parda (20%).

O Conselho do Povo de Terreiro afirma que o estado abriga cerca de 65 mil centros religiosos afro-brasileiros —25 mil deles em Porto Alegre.

Destes, ao menos 650 foram atingidos diretamente pelas inundações que ocorreram entre abril e maio no Sul, segundo levantamento feito pelo conselho em parceria com o Nega (Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente) e com o Uniafro, ambos da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Os terreiros afetados, porém, não receberam qualquer recurso específico do poder público para sua reconstrução até o momento da publicação desta reportagem.

“Arriscamos a ter mais terreiros no Rio Grande do Sul do que na Bahia, mas isso não aparece”, diz Mãe Bia, ao afirmar que o estado é “extremamente racista”. “Não há interesse em ajudar o povo de terreiro. Por quê?É do negro, vem do negro, ‘não vamos fazer para essa negrada'”, avalia.

O governo estadual afirma que atuou junto com o conselho e disponibilizou veículos, assessoria técnica e recursos humanos para que os conselheiros chegassem aos terreiros atingidos, além de enviar gás, água potável e cestas básicas às comunidades.

“Também foram realizadas visitas de técnicos das secretarias de Habitação, da Saúde e do Desenvolvimento Social às casas”, diz a nota, que ressalta os benefícios e recursos cedidos a toda a população, como o Devolve ICMS, programa que entrega de volta parte ou todo o imposto pago por famílias de menor renda.



Os terreiros são todos em periferia e em zona de risco, porque é o que sobrou para nós

Mãe Bia conseguiu salvar a maior parte dos orixás quando correu para o terreiro e os colocou em caixas de isopor, mas o espaço ficou cerca de 20 dias coberto por água, e ela perdeu todo o restante que tinha, de móveis às roupas brancas usadas em rituais.

Hoje não mora mais na casa de madeira atrás do terreiro, que teve a estrutura afetada, e ainda não conseguiu retomar as giras (reuniões espirituais).

Por causa da casa prejudicada, ela conseguiria acessar o recurso cedido pelo governo para comprar um local novo de até R$ 200 mil, financiado pela Caixa. Mas, na tradição religiosa no Rio Grande do Sul, a casa fica no fundo do terreiro e morar em um apartamento ou em uma casa sem quinta —o que conseguiria comprar na região metropolitana— não seria uma solução, afirma.

O Ministério da Igualdade Racial cedeu cestas básicas para os terreiros, que foram distribuídas pelo conselho após o levantamento de unidades afetadas. “Mas a gente não é só barriga: a gente mora, veste, trabalha. E para trabalhar precisa ter um lugar”, diz Baba Diba.

Quando a chuva começou, a ialorixá Mãe Ieda de Ogum, 83, recebia cerca de dez pessoas em casa para “fazer chão”, um recolhimento espiritual em que os filhos da casa fazem rituais e dormem no terreiro por alguns dias.

O Ilê Nação Oyó, que reúne a quimbanda, a umbanda e o batuque (correspondente ao candomblé), foi fundado em 1964, na Cidade Baixa —um dos bairros de Porto Alegre mais atingidos pelas inundações. Mãe Ieda saiu quando a água já estava dentro do terreiro e voltou quase dois meses depois.

“As pessoas não puderam nem tirar as obrigações que estavam ali dentro. Ou cuidava da vida, ou cuidava de colchão, lençol, dos orixás. Foi muito triste, eu perdi tudo”, diz Mãe Ieda, que passou um mês sem trabalhar, uma vez que dependia do terreiro.

Hoje, quando chove, ainda entra água na casa, que teve o teto prejudicado no ano passado. A parte elétrica do local também foi danificada. Portas, mesas, bancos, armários, roupas brancas de rituais, colares de contas, instrumentos, janelas e eletrodomésticos foram todos perdidos. As imagens dos santos e orixás estão sendo pintadas novamente.

Mãe Ieda tem cerca de 500 filhos de santo, diz, em todo o estado, mas também na Argentina e no Uruguai. “Essa casa já deu muita vida e muita saúde. São 64 anos.”

“Esses R$ 5.000 [de auxílio reconstrução, cedido pelo governo federal] até hoje não recebi. Nada. Conheço muitos vereadores, políticos, e não me trouxeram nem uma vela. Ganhei de pessoas que me ajudaram”, diz Mãe Ieda, que conseguiu doações através de uma vaquinha online divulgada no perfil do Instagram do Ilê Nação Oyó.

Segundo a coordenadora-adjunta do Uniafro, da UFRGS, Tanara Furtado, o impacto das inundações nos terreiros tem dimensões material, espiritual e psicológica, além de afetar a comunidade ampliada, já que os centros prestam atividades de cunho social, como distribuir cesta básica, marmita e roupa.

“É uma religião em que os artefatos são materiais. Os artefatos ritualísticos foram levados pela água”, resume Furtado. “Os locais são de coletividade, então se um terreiro tem 30 filhos de santo, multiplica isso por quatro, que são as famílias deles: você já tem 150 pessoas atingidas indiretamente.”

A UFRGS aguarda um recurso do Ministério da Igualdade Racial para fazer um mapeamento censitário dos terreiros como preparação para possíveis futuras emergências climáticas.

“Sabemos que viveremos outra situação como essa por causa do nosso posicionamento geográfico, então não podemos ser pegos de surpresa mais uma vez”, diz Furtado.

Na quadra em que fica o terreiro da ialorixá Carla Rosângela, 52, conhecida como Mãe Carla de Yemanjá, no bairro Humaitá, a reportagem identificou pelo menos outras cinco casas de umbanda.

Mãe Carla começou a ir para o terreiro em agosto, três meses depois das enchentes. “Não dava para acender uma vela”, diz.

Com a casa quase 30 dias embaixo d’água, até as telhas do teto foram danificadas pelos barcos que passaram por cima durante a inundação.

Mãe Carla recebeu os auxílios reconstrução do governo federal e do governo estadual, mas ainda assim não conseguiu remontar o terreiro e a própria casa.

“Quando abri a porta da minha casa, vi que meus santos estavam todos no mesmo lugar, cobertos por barro, mas íntegros. Passaram por tudo aquilo esperando baixar as águas e a impressão que eu tive foi essa: que eu também tivesse essa força.”

O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.



Source link

Adicionar aos favoritos o Link permanente.