Sintonia: Nando tomaria duas pílulas na Matrix de quebrada – 24/02/2025 – Veny Santos


No intervalo entre um episódio e outro de “Sintonia”, eu já misturava vida real com ficção. Passava a fundir obras distintas com esta que, ao meu inquieto ver, pareciam fazer das tripas coração para não me quebrar por dentro —ou o completo oposto: estilhaçar-me demonstravam querer. Nando, personagem interpretado por Christian Malheiros, para mim virou o Neo com proceder, preso à Matrix de quebrada. Era “o correria” que oscilava entre as próprias contradições e as da estrutura que o escalou para os papéis de protagonista da trama e antagonista da própria história. Sempre enrolado, sempre se soltando.

Deixei o imaginário fluir. Como seria a cena em que, nesta versão outra que levei para as ideias no intuito de inquirir as minhas próprias de vileiro, Morpheus oferece a Thomas A. Anderson, até então um apático programador e hacker interpretado por Keanu Reeves na obra de ficção dirigida e escrita pelas irmãs Wachowski, duas pílulas com efeitos diferentes? E se, em vez de Morpheus e Thomas, outra entidade antiga ficasse diante de Nando da VA (Vila Áurea)?

No estranho conforto de uma cadeira praticamente invisível, ocupava o espaço o corpo esguio do velho homem. Incensava a sala com seu cheiro de canela, café e melaço de cana. Fragrância agridoce. Dava sede, um pouco de náusea e vontade de degustar o ar.

O senhor, na umbra de sua tez, estendeu as mãos. Duas pílulas: uma azul e outra vermelha. O restante da história não precisaria ser contado senão pelo fictício fato de que, aqui, ao invés de tomar uma, o sujeito oculto diante da sentença engoliu ambas quando os dentes ainda de leite eram. Nando, criança, tomava sua primeira decisão sem copo d’água para descer mais fácil.

Nesta Matrix, engole-se as duas pílulas.

Ilusão e realidade operando numa mesma existência. O personagem de “Sintonia” se desenvolve no espaço intermediário entre o sonho do triunfo e os planos falíveis do trajeto sem retorno pelas vias do crime. Órfão de matriz, tendo o luto da avó como única herança, sua base foi outra —a rua. Nela, o anti-herói trocou capa por capuz e buscou o meio-termo entre preservar sua família do sangue nas veias e corresponder ao fechamento com a do sangue nas mãos. Buscou equilíbrio no fogo cruzado.

Nando instiga o outro interessado em conhecer sua história —semelhante a de muitos e muitas em real sintonia com os temas abordados na série— a tomar a pílula ilusória seguida da realista. Convida a abandonar o maniqueísta vício de achar que as complexidades impostas pelas desigualdades sociais podem ser facilmente elucidadas a partir de frases dadas ao senso de mundo que rejeita a importância de se considerar as contradições inerentes a fatos sociais.

Ao engolir tanto a promessa de manter a ilusão sobre o futuro quanto a de lucidez face ao presente, Nando, o Neo da Vila Áurea, mais tomou decisões do que fez escolhas. Precisou ser pragmático enquanto, sabidamente, enganava-se por acreditar que seria possível romper com a criminalidade. Para sobreviver ao ambiente que o cultivava como reativo, manteve a devaneante esperança de que tudo não passaria de um pesadelo —ou, no caso de final feliz, sonho.

Tomou duas decisões de uma vez só o Nando. Não teve escolha.


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