Leia carta de Eunice Paiva a Médici sobre sumiço do marido – 01/03/2025 – Poder


No dia 22 de março de 1971, após dois meses sem respostas sobre o desaparecimento de Rubens Paiva na ditadura militar, Eunice Paiva pediu ao então presidente, Emílio Médici, justiça para seu marido.

Rubens Paiva foi levado por agentes da Aeronáutica no dia 20 de janeiro de 2021 e morreu sob tortura na prisão.

Quando escreveu a Médici, Eunice aguardava havia um mês uma resposta para a carta enviada ao então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, que presidia o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.

Até então, Eunice acreditava que o ex-deputado estava vivo. O apelo foi feito em nome da sogra e da segunda filha, Eliana.

“Pedimos ao Chefe da Nação, a justiça que deve resultar da obediência das Leis. Ao meu marido, que é um brasileiro honrado, não pode ser recusado, num País como o nosso, cristão e civilizado, o direito fundamental da defesa”, escreveu Eunice.

“Estamos certas de que Vossa Excelência não permitirá lhe seja negado, sob pena então do desmoronamento de toda a ordem pública, o direito elementar de ser preso segundo as leis vigentes no País”, seguiu em sua carta.

A carta consta entre os cerca de 150 documentos reunidos pela Folha no Arquivo Nacional e na Embaixada dos Estados Unidos que permitem refazer a linha do tempo desde o desaparecimento.

O registro não foi contemplado no filme “Ainda Estou Aqui”, indicado ao Oscar, e no livro de Marcelo Rubens Paiva, que baseou a obra cinematográfica.

No livro, Marcelo conta que a mãe soube da morte do pai pelo jornalista Fritz Utzeri, do Jornal do Brasil. Utzeri disse ter ouvido de Médici a frase: “morreu em guerra”.

O apelo a Médici consta como anexo do processo aberto por Eunice junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que acabaria arquivado em agosto de 1971.

A correspondência é citada pela jornalista e pesquisadora Juliana Dal Piva no livro “Crime sem castigo: como os militares mataram Rubens Paiva”.


Carta de Eunice para Emílio Médici

Excelentíssimo Senhor Presidente da República

Marechal Emílio Garrastazu Médici

Há mais de um mês enviei ao Ministro da Justiça do seu governo, que é igualmente presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, a carta denúncia cuja cópia junto aqui para o conhecimento direto de Vossa Excelência.

É a carta de uma mulher aflita, que viu desabar sobre sua família uma torrente de arbitrariedades e de desatinos inomináveis, e de que ainda é ainda vítima seu marido, engenheiro Rubens Beyrodt Paiva, preso por agentes da Segurança da Aeronáutica no dia 20 de Janeiro, mantido até agora incomunicável, sem que se conheça o motivo da prisão, quem efetivamente a determinou, e o local onde se encontra.

Secundamos hoje, minha sogra e eu, a mãe e a esposa, os sentimentos de minha filha Eliana, menina de 15 anos, que se dirigiu a Vossa Excelência, depois de libertada, quando eu própria me encontrava detida incomunicável no quartel da Polícia do Exército, à Rua Barão de Mesquita, nesta cidade, pelo simples fato de ser a esposa de Rubens.

Pedimos ao Chefe da Nação, a justiça que deve resultar da obediência das Leis. Ao meu marido, que é um brasileiro honrado, não pode ser recusado, num País como o nosso, cristão e civilizado, o direito fundamental da defesa. Estamos certas de que Vossa Excelência não permitirá lhe seja negado, sob pena então do desmoronamento de toda a ordem pública, o direito elementar de ser preso segundo as leis vigentes no País.

Rubens foi preso na minha presença e na dos nossos cinco filhos; foi visto por Testemunhas ao longo do dia 20 de janeiro no Quartel da 3ª Zona Aérea de onde foi transportado no fim da tarde para o Quartel da Polícia do Exército na Barão de Mesquita; sua fotografia no livro de registro do prisioneiros no referido quartel da PE eu mesma vi, ao lado da minha própria e da minha filha Eliana; sua presença nesse Quartel me foi afirmada por Oficiais das Forças Armadas que me interrogaram ao longo dos 12 dias em que estive presa, isto é até o dia 2 de fevereiro último; seu carro próprio, no qual foi conduzido prisioneiro, vi-o no pátio do mencionado Quartel e me foi devolvido como comprova o recibo anexo.

Não é possível que, mais de 60 dias decorridos, conserve-se assim desaparecida uma pessoa humana!

Recusamo-nos a acreditar no pior.

Confiamos na ação de Vossa Excelência e em meio a inquietação e angústia enormes que estamos vivendo, acreditamos que Vossa Excelência fará prevalecer a autoridade das leis do seu Governo e o respeito à justiça que enobrece as nações.

Respeitosamente,

Maria Eunice Paiva

Rio de Janeiro, 22 de março de 1971

A reportagem foi produzida em parceria com o Google. A Folha coletou documentos que estão agora organizados e disponíveis à consulta na ferramenta Pinpoint. Veja aqui todas as coleções.



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