Hitchcock na Cinemateca: Mestre conhecia o seu público – 06/03/2025 – Ilustrada


Nesta altura dos acontecimentos, não há quase ninguém que goste de cinema e não tenha visto os grandes filmes de Alfred Hitchcock. Mas na tela grande? Numa sala com bons equipamentos e projeção de primeira? É uma experiência bem diversa da televisão esta a que a Cinemateca prepara —uma retrospectiva do diretor, desta quinta-feira até 16 de março.

Será uma ótima oportunidade para se encontrar com os procedimentos fantásticos que marcaram o cinema de Hitchcock. O mais frequente deles está na estrutura do suspense, que encontramos já em “Os 39 Degraus”, e que se reencontrará, com variações sempre inventivas, em “Intriga Internacional”, “Frenesi” e “Ladrão de Casaca”. Ali, um inocente acusado de um crime capital precisa provar sua inocência. Para isso, deve fugir, ao mesmo tempo, da polícia, que quer prendê-lo, e do verdadeiro criminoso, que deseja matá-lo.

A partir dessa estrutura, Éric Rohmer e Claude Chabrol foram os primeiros a notar a presença fortíssima do catolicismo na obra do mestre, já que o inocente sempre é confundido com o culpado porque tem, também, uma falta. Só que uma falta menor, insignificante, que corresponderia ao fato de todo homem carregar alguma culpa —o pecado original. Essa estrutura de transferência de culpa estaria presente também em filmes como “Pacto Sinistro”.

Nem todos os filmes entre os que passarão na Cinemateca se enquadram nesse padrão. Há momentos em que Hitchcock introduz certa introspecção na aventura, como em “Festim Diabólico” e “Um Corpo que Cai”.

“Festim Diabólico” é de uma ousadia sem fim, pois simulava um filme inteiro sem cortes na câmera —o que era impossível, pois os rolos de negativo tinham no máximo 11 minutos de duração. Mas esses cortes eram tão bem disfarçados que se tornavam invisíveis, ao menos na primeira visão do filme. Só que pouca gente foi ao cinema para ver essa ousadia, e o diretor abandonou a ideia em pouco tempo.

Já “Um Corpo que Cai” é um dos filmes de Hitchcock com vida mais acidentada. Começou pelo relativo fracasso, quando de seu lançamento original: o público não reconheceu as características do suspense hitchcockiano e o rejeitou.

Depois, o filme sumiu de circulação por uma questão de direitos. Para vê-lo era preciso correr de um lado a outro da cidade atrás de uma sessão rara, fazer uma fila imensa, horas a fio, para ver uma cópia riscada em uma projeção nem sempre impecável.

Depois que a questão de direitos foi resolvida, o filme entrou em retrospectivas, ganhou cópias em VHS, depois em DVD, passou na TV, entrou na lista dos melhores filmes de todos os tempos —em primeiro lugar, às vezes. E acabou até ofuscando outras obras-primas hitchcockianas.

O que não é, por sinal, o caso de “Janela Indiscreta”, joia introspectiva da série com James Stewart. Essa fez sucesso além de contar com Grace Kelly no principal papel feminino.

A parceria de Grace com Hitchcock começou pouco antes, com “Disque M para Matar”, famoso sobretudo pela clássica cena da tesoura, que não perde o efeito assustador —mesmo sem a projeção 3D, como o original. O último encontro entre atriz e diretor aconteceu em “Ladrão de Casaca”, filmado na Riviera francesa e notável pela elegância, seja dos ambientes, seja de Grace e Cary Grant, ator principal.

Embora não tivesse posição política definida, Hitchcock adorava as situações de conflito entre países, o que o levava a filmes de espionagem tão marcantes quanto “Interlúdio”, no imediato pós-guerra, ou “O Homem que Sabia Demais”, filme típico da Guerra Fria, em que o suspense gira em torno do sequestro de um menino, mas, sobretudo, da música. Seja a que determinaria a morte de um importante homem de estado, seja a que Doris Day canta desesperadamente, na tentativa de ser ouvida pelo filho sequestrado.

Restam alguns filmes de decifração mais difícil, por vários motivos. “Rebecca, a Mulher Inesquecível”, estreia de Hitchcock nos Estados Unidos, em filme com forte influência de David O. Selznick, o produtor; o intrigante “Os Pássaros”, centrado numa revolta de pássaros que hoje pode até ser interpretado, por exemplo, como revanche da natureza contra o homem.

E, por fim, “Psicose”. Feito em preto e branco, com orçamento modesto e absoluta disposição de vingar-se de um público que nos últimos filmes já não o contemplava com o sucesso do passado. Desta vez, nem mesmo a vítima é tão inocente assim, já que foge com o dinheiro do seu patrão para se casar. Ela é morta no motel de Anthony Perkins. Quem morre ali, na verdade, era a estrela do filme, Janet Leigh, e ao matá-la Hitch pretendia deixar os espectadores sem chão —na época, uma estrela nunca morria antes do fim, quanto mais com meia hora de filme.

Daí por diante, o autor pretendia que tudo fosse terror para os espectadores. E não deu outra. Era a consagração final de um diretor que sempre teve orgulho de conhecer profundamente o seu público.



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