Nany People:Se há religião ou política no churrasco, corro – 08/03/2025 – Mônica Bergamo


“A vida é trânsito, a vida é dia útil. A vida não é domingo”, diz Nany People na sala de TV da minha casa, onde ela topou dar uma longa entrevista com um único pedido: um copo d’água. Era sexta-feira à tarde, véspera do Carnaval, um daqueles dias em que tanto a temperatura ambiente quanto a ansiedade geral pareciam pegar fogo.

Chegou de Uber, “meu carro foi para a revisão”, na hora marcada, de vestido preto e branco, maquiagem leve, batom vermelho, óculos escuros e uma peruca alta com tons de rosa e loiro que parecia a cobertura de um cupcake. “Peruca nova essa, tô estreando hoje”, disse.

Sem perder um segundo para pensar, entrou e foi logo dizendo: “Pergunte o que quiser, comigo não tem frescura. Depois vocês se viram na edição para tirar as baixarias, porque eu falo tudo mesmo, e falo sem parar”.

Em uma hora e meia de conversa, Nany não se contradisse. Falou tudo, sem exceção, riu, fez todo mundo rir, declamou poesia, cantou, se emocionou e até chorou falando das mulheres da sua vida, especialmente da atriz Lilia Cabral, que considera sua maior inspiração artística.

As outras são sua mãe, uma mulher branca que enfrentou o racismo para se casar com um homem negro, o pai de Nany, e que sempre a protegeu da sociedade machista e homofóbica do interior de Minas, onde nasceu e foi criada. A apresentadora Hebe Camargo e a cantora Fafá de Belém, que coincidentemente também comemora 50 anos de carreira este ano, e com quem faz um show no próximo dia 25, no Teatro Bradesco, são as outras.

Também não economizou esculachos, críticas às sensibilidades à flor da pele do mundo woke de hoje em dia e aos patrulheiros de plantão, que ousam cobrar de Nany que esteja sempre alinhada com o que é considerado apropriado a cada momento.

‘”A ignorância é atrevida’, minha avó sempre dizia, e eu vejo cada vez mais como essa frase é verdadeira”, contou. “Eu nasci viado, comecei a me montar no Carnaval, depois fiz show em boate em São Paulo, trabalhei como garçom no Café Piu Piu, aí criei essa personagem feminina que fez sucesso e com quem me identifiquei. No começo eu era um ator transformista, aí virei drag, depois travesti, e agora, depois de 18 anos de muita luta, consegui mudar meu nome na lei, meus documentos todos estão em nome de Nany People Cunha Santos”.

É, portanto, de acordo com a nomenclatura atual, uma mulher trans. “Sou uma mulher que se autofez, tá bom assim?. Naquela sigla gigantesca que se usa hoje em dia, LGBTQIAPN+, eu sou T, de Tiranossauro”, brinca. “Agora, não tenho mais um minuto para perder com isso, não bato palminha para essa história de linguagem neutra, já briguei muito pelo meu pronome feminino, chega”.

“Se você se identifica com uma maçaneta, eu a chamo de maçaneta. Prefere cabrita? Então tá bom, chamo de cabrita. Prefere barra de ferro, bola de fogo? Tá bom também”, afirma.

“Essas coisas mudam com o tempo. Eu sou da época em que a sigla era GLS, gays, lésbicas e simpatizantes. Aí as lésbicas brigaram porque queriam a primeira letra, bateram o pau na mesa, e virou LGBT, lésbicas, gays, bissexuais e trans. E nunca mais parou de entrar letra nessa sigla. E eu tenho mais o que fazer.”

“Tudo depende de como a outra pessoa me lê. E isso não é problema meu, e não tem nada que eu possa fazer para mudar isso. Tem gente que diz que eu sou uma inspiração, tem gente que diz que eu sou uma transgressão. Minha função é ser quem eu sou e me dar o direito de existir”, afirma.

“Quando surge política, religião ou identidade de gênero num churrasco, eu corro para a linguiça. De preferência, a do chapeiro”, segue.

Nany nasceu no dia 1º de julho de 1965 em Machado, uma cidadezinha de Minas Gerais, e foi criada em Poços de Caldas. Nas costas, tem tatuado “made in Poços de Caldas” no alto, e, embaixo, “I love São Paulo”, cidade para onde se mudou aos 20 anos, depois de se formar em química no ensino técnico.

“Vim de ônibus, lendo ‘Feliz Ano Velho’, do Marcelo Rubens Paiva. Quando cheguei, a peça baseada no livro estava em cartaz no Auditório Augusta, e eu fui assistir. Foi aí que eu conheci e me encantei pela Lilia Cabral. Quando acabou a peça ficava todo mundo conversando com os atores e a Lilia me disse que tinha feito EAD, Escola de Arte Dramática, e que era de graça, na USP. Eu enlouqueci. Não fiz a escola, mas nunca mais parei de seguir os passos da Lilia.”

“Eu me vestia no Carnaval como as personagens da Lilia quando ela começou a fazer novela. Fui de Aldeíde Candeias, quando ela fazia ‘Vale Tudo’, depois de Amorzinho, que ela fazia em ‘Tieta’, aí Ernestina, de ‘Salomé’. Eu amo a Lilia porque ela consegue ser cômica e dramática ao mesmo tempo, ela consegue moldar a atuação dela pro lado que for preciso, é uma atriz completa”, diz Nany.

Para se sustentar em São Paulo, trabalhava no que conseguia, como homem ou como mulher. Foi garçom, bilheteira e camareira na Escola Macunaíma, onde estudou atuação. Quando começou a frequentar a noite gay dos anos 1980 em São Paulo, adotou o nome Nany People, em homenagem à atriz e modelo Nâni Venâncio, que fazia a abertura da primeira versão da novela “Pantanal”, na TV Manchete, em 1990.

“E o People veio junto porque eu sempre fui muito conversadeira, falava com todo mundo na porta das boates, então me chamavam de Nany do povo, e eu resolvi assumir, mas sofisticar”.

Os 50 anos de carreira não começaram aqui em São Paulo, e sim na infância, ainda em Minas Gerais. “Eu comecei, na verdade, muito antes, cantando em quermesse na minha cidade, aos quatro anos. Criancinha de tudo. Depois passei a fazer concursos de calouros. Quando eu tinha oito anos o Chacrinha passou por Poços e fiz um concurso, ganhei nossa primeira televisão nessa história”, conta.

Mas foi aos 10 anos que percebeu, em um palco de um desses concursos, que aquele era o seu lugar, onde queria passar o resto da vida. Então começou a contabilizar a sua carreira, que já estava em curso.

Nunca mais parou de atuar, cantar, animar festas, viajar e batalhar, de um jeito ou de outro, para viver a vida de artista com que tanto se identificou. “Como mulher eu sempre me identifiquei, mas nasci num lugar e numa época em que isso não parecia ser uma opção, essa transição só surgiu na minha vida depois”.

Foi já como Nany People que estreou na TV, em 1997, como repórter no programa “Comando da Madrugada”, apresentado por Goulart de Andrade na Rede Manchete. Quando o apresentador mudou de canal e foi para a TV Gazeta, levou Nany junto.

Ela também atuou como repórter do “Flash”, de Amaury Jr., na Band, fez parte do elenco de “A Praça É Nossa”, do SBT, entre 2007 e 2009, e participou da terceira temporada do reality show “A Fazenda”, da TV Record, em 2010.

Foi repórter mais uma vez, no programa da Xuxa na TV Record que estreou em 2017. Em 2018, estreou como atriz de novelas na TV Globo como uma química transexual em “O Sétimo Guardião”. Em 2019, participou da terceira temporada do reality “Popstar”, também na Globo.

Também é jurada em programas de televisão, como “Cante se Puder”, no SBT, e, desde 2022, faz parte do júri do quadro “Caldeirola”, no programa “Caldeirão do Mion”, da Globo. Além disso, participa do humorístico “Vai Que Cola”, do Multishow.

Comento como é difícil encontrar outro artista que tenha passado por tantas emissoras de TV como ela, que dá uma resposta afiada que nem navalha: “Sou pau para toda obra”. E, claro, não pára por aí. “E obra para todo pau”. Em maio, ela relança a nova edição de sua biografia, “Ser Mulher Não É Para Qualquer Um – A Saga Continua”. Prepara também um documentário e um show com orquestra que se chamará “Nany in Concert”, ainda sem datas definidas.

Sua peça de maior sucesso, “Nany People Salvou Meu Casamento”, de 2007, voltou ao teatro no começo deste ano, em edição recauchutada, para uma temporada curta com nome novo, “Como Salvar Seu Casamento”. Mas o público não parou de pedir bis, e a temporada foi estendida até o final deste mês, no Teatro Mooca.

Pedi dicas, óbvio. “Banheiros separados. E respeito, gentileza, simpatia. Pulso também, porque homem é um bicho que precisa de comando”, afirma. “A lição de vida mais importante de todas quem deu foi a mãe da Cinderela, que disse para a filha ‘tenha coragem, seja gentil’”.

Nany foi casada uma vez só, e descobriu que esse negócio de morar junto não é para ela. “Eu não sou boa de casar, sou boa de acasalar”, explica. “E gosto dos novinhos. Quem curte pau velho é orquídea, eu sou trepadeira”. “Sou casada com o meu trabalho. E entrego o que é combinado.

Chego para gravar com o texto decorado, maquiagem feita, peruca no lugar. Sem frescura, sem exigência de camarim com ar condicionado, sem essas bobagens. Quero um café e que me tratem com o respeito com que eu trato os outros”.

E pagamento adiantado, no caso de apresentações ao vivo em outras cidades, o que faz quase todos os finais de semana que tem livres. “É que nem prostituta, dinheiro na mão, calcinha no chão. Dinheiro sumiu, calcinha subiu”. “Não tenho nenhum segredo para resumir minha história, minha vida, explicar meu sucesso. É só trabalho, dedicação, honestidade. E não mando recado, rezo minha missa de corpo presente.”



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