Setor não tem vocação para pilhagem, diz chefe da Anfavea – 10/03/2025 – Mercado


Passados 69 anos desde sua criação, a Anfavea (associação das montadoras) terá seu primeiro presidente vindo do mercado, sem ligação com alguma montadora.

Em sua primeira entrevista após ser confirmado para o cargo que assume em abril, Igor Calvet mostra insatisfação com importações chinesas e vê com preocupação a guerra tarifária promovida pelo governo de Donald Trump.

Como fica a nova configuração da Anfavea?

Antes havia um presidente institucional vindo de uma das montadoras, por um período de três anos. Agora, passa a ser um executivo independente por um prazo indeterminado à frente da associação. Esse movimento já vinha sendo ventilado, eu mesmo, quando estava do outro lado do balcão, já tinha ouvido essa conversa sobre as mudanças necessárias.

Sua vinda para a Anfavea já foi uma preparação para o cargo?

Não. O trato era de que eu viria para ser, de fato, diretor-executivo. Quando cheguei, iniciou-se um processo de revisão da governança da Anfavea em todos os aspectos, não só de presidência, porque o que temos aqui são instâncias decisórias múltiplas, as câmaras.

São órgãos assessores que chamamos de diretoria, formada pelos representantes das associadas. E há também as comissões, como as de meio ambiente e de assuntos tributários.

O processo de mudança da governança da Anfavea iniciou-se pelo questionamento se esse formato estava sendo eficiente ou não. O mercado mudou muito nos últimos anos com o avanço tecnológico e com a transição energética. Cada empresa, globalmente falando, tem caminhos diferentes.

A Anfavea passou por dois anos de desavenças internas relacionadas, principalmente, a questões de incentivos tributários regionais em meio à transição energética. A entidade está pacificada?

Sim, e parte dessa pacificação advém desse processo de mudança de governança. Temos por princípio não debater a questão dos incentivos regionais, porque envolve a estratégia comercial de cada uma das empresas. Se eu fosse defender, como presidente da Anfavea, um lado ou outro, estaria sempre arrumando um grande problema.

O lobby feito junto ao governo não é conduzido pela Anfavea?

Não, é feito pelas montadoras. A Anfavea não se movimentou a favor ou contra qualquer um dos incentivos. Eu posso garantir, nós não nos movimentamos nem para um lado, nem para o outro nessa discussão.

Como secretário de Indústria, tive a experiência de conviver com quase todas as associações industriais do país, e vi algumas mudando também. O setor farmacêutico, por exemplo, passou por esse processo.

O que tem sido construído no âmbito associativo é a figura de um conselho de administração, esse, sim, que orienta o executivo. O que acontece não é o associado se imiscuir nos assuntos de gestão interna. A associação é uma coisa, o associado é outra coisa. Ele participa de uma instância decisória, que é mais ou menos o que vamos fazer na Anfavea.

As montadoras chinesas vão entrar na Anfavea?

Não há impedimento para que isso aconteça. Não somos contra nenhuma empresa chinesa, eu tenho relação com todas elas, inclusive antes de eu vir para a Anfavea. Mas há um dispositivo estatutário que é o seguinte: precisa produzir localmente. Esse processo ainda não aconteceu.

Já me encontrei com o representante de uma dessas empresas chinesas que disse “quando começarmos a produzir, estaremos juntos”. Eu falei que vamos conversar. Não existe nenhuma discriminação por origem de capital na Anfavea, até porque nós somos uma associação de multinacionais.

Mas é natural que ocorra um certo estremecimento quando há um novo entrante no mercado. Aconteceu anos atrás, quando as marcas sul-coreanas chegaram, por exemplo.

Ocorreu em vários momentos.

Sim, em vários momentos essas tensões acontecem, são “newcomers” entrando e isso, de certa forma, desestabiliza quem já está no mercado, Mas as coisas se acomodam ao longo do tempo, como já vimos acontecer.

É óbvio que você está perguntando isso porque vê esses estremecimentos e os posicionamentos da Anfavea sobre as importações.

Ia questionar sobre esse tema agora. Na sua gestão, a Anfavea vai reiterar o pedido de retorno imediato e integral do Imposto de Importação para veículos híbridos e elétricos?

Aqui é uma associação de fabricantes, né? O mercado brasileiro não tem vocação para pilhagem. Essa expressão é forte, mas eu acho que é necessária. Não é chegar no mercado e tomá-lo de assalto. Existem empresas aqui instaladas há 30, 40, 50, 60, 70 anos. Há uma rede de fornecedores e distribuidores construindo capacidade produtiva, empregando no país.

Agora, se houver anúncios de investimentos e esses forem de fato concretizados, não temos absolutamente nenhum problema, porque aí são questões do mercado.

Mesmo que seja um formato de produção CKD [em que as peças são importadas]?

Irei sempre lutar para ser um formato de produção mais elaborado, e tenho certeza de que isso é o que faz o Brasil avançar. Apertar parafuso apenas não traz o desenvolvimento que precisamos para a indústria, porque não gera cadeia de fornecedores, não gera pesquisa e desenvolvimento.

Em relação à transição energética, o Brasil ganha relevância global por ter alternativas menos poluentes como o etanol, mas o volume do mercado nacional não justifica grandes investimentos vindo das matrizes. Como a Anfavea vê esse cenário?

Pela natureza associativa, a Anfavea não pode escolher uma rota tecnológica específica. Isso quer dizer que a entidade não escolherá defender apenas os elétricos e também não escolherá defender apenas os biocombustíveis.

Mas, em outros momentos, a Anfavea apresentou estudos indicando o etanol como caminho. Houve alguma mudança?

Não vamos escolher uma rota para dizer “essa é a rota da Anfavea”, acho que não cabe nesse mundo de transformação. O mercado automotivo é global, tanto é que essas questões tarifárias do momento estão nos desestabilizando.

Por outro lado, não podemos ser omissos com uma vantagem competitiva que nós temos desde a década de 1970. Hoje, mais de 90% dos carros produzidos aqui são flex.

Agora, o Brasil está discutindo o uso de etanol na Índia, e há países africanos interessados. Neste ano, na COP30, esse é um dos nossos discursos como Anfavea, com o Brasil protagonista da transição energética no setor automotivo por meio do uso de biocombustíveis.

Em relação à guerra tarifária, como a Anfavea interpreta as medidas tomadas pelo governo Donald Trump? São uma janela de oportunidade ou um problema para a indústria automotiva brasileira?

Hoje, as questões geopolíticas geram instabilidade e insegurança.

Por um lado, estamos vendo a China com uma capacidade de produção de 50 milhões de veículos por ano, mas produzindo algo em torno de 30 milhões de unidades. Ou seja, há uma capacidade ociosa de 20 milhões. O mercado chinês vem crescendo, mas num ritmo menor do que crescia há 10 anos.

Significa dizer que há um excedente produtivo para ser colocado em outros mercados, como já tem acontecido. Recentemente, vimos um navio inteiro carregado de carros chineses chegando no Brasil, e isso já aconteceu ano passado.

O mercado automotivo chinês não está desaquecido, mas cresce a ritmo mais lento e precisa escoar a produção.

Por outro lado, vemos os Estados Unidos. Até 20 de janeiro, eu confesso que nós não tínhamos essa preocupação, porque todo mundo sabia o que o Trump poderia fazer, mas ninguém acreditava que ele faria. Não sei qual estratégia está por trás, e aparentemente não é uma estratégia, só que esses movimentos trazem insegurança, nunca se sabe qual é o desfecho.

Temos empresas aqui na Anfavea que são de capital americano e tampouco conseguem compreender a plenitude dos movimentos que estão acontecendo nos Estados Unidos.

Trump diz que vai diminuir o ritmo de eletrificação, mas quando fala isso em um mercado de 15 milhões de veículos por ano, o ritmo de eletrificação no mundo também começa a diminuir.

Hoje, nossas empresas não conseguem assumir um ônus de 25% de tarifa sem repassar parte ao consumidor. Você tem que, obviamente, reduzir as suas margens e, às vezes, ficar no negativo para continuar no mercado. Então, essa conta não fecha.

Se as empresas quiserem vir para cá investir e ter a mesma estrutura de custos trabalhistas e logísticos, estão competindo de igual para igual. Mas as importações chinesas triplicaram de 2023 para 2024, estamos importando 120 mil veículos.

Temos o pleito de recomposição do Imposto de Importação. Eu não posso dizer que o governo não se preocupa com a indústria, isso nunca vai sair da minha boca, porque eu conheço os ritos dentro do governo e as pessoas que estão lá. Eles, sim, são defensores da indústria, mas eu também sei que o governo, na verdade, são vários governos. Na minha época era assim.

Eu estava uma vez com o [então presidente] Michel Temer e ele me perguntou alguma coisa do programa Rota 2030. Eu respondi e ele me disse: “Secretário, você sabe que o Henrique [Meirelles] me fala o contrário?”. Eu respondi: “Presidente, eu sou secretário de Indústria, ele é ministro da Fazenda. Acho que a gente vai ter ideias diferentes sobre esse tema”.

Essas divergências entre os ministérios do Desenvolvimento e da Fazenda têm ocorrido hoje?

Acho que há um alinhamento muito grande. O [Fernando] Haddad, na Fazenda, compreende muito a importância da indústria e, sobretudo, da automotiva. Mas há uma Casa Civil que talvez não concorde com isso, tem o Ministério do Meio Ambiente com uma agenda muito forte.

A regulação ambiental não pode ser ao ponto de inviabilizar o desenvolvimento da indústria. Todo mundo quer reduzir emissões, mas chega em um determinado ponto em que ou você faz isso de maneira cadenciada, ou então você não paga o investimento.

A questão do imposto seletivo, por exemplo, não seria uma demonstração de que há uma cizânia entre MDIC e Fazenda?

Não vejo dessa forma. A proposta faz uma certa diferenciação entre veículos. Por exemplo, o turbodiesel vai pagar mais que o veículo a etanol ou o puramente elétrico. Acabará sendo um instrumento de política industrial.

Agora, com o setor, há uma cizânia. Estamos sendo colocados no rol de produtos que são nocivos à saúde e ao meio ambiente, o que não é verdade. E aí a gente coloca a reputação do setor numa posição muito delicada. O fator importante para mim é que não se pode, em uma reforma tributária, fazer política industrial, que é um capítulo à parte.

Já trabalhamos com uma carga tributária sobre o setor que, na média, superou a 40%. Vamos supor que a gente tenha um IVA [Imposto sobre Valor Agregado] de 28,5% ou 26,5%. A quanto vai chegar com o imposto seletivo?

Não sabemos se os investimentos que anunciamos no ano passado, de R$ 180 bilhões, com grande parte para a transição energética, poderão ser cumpridos, porque não sabemos como será a estrutura tarifária. É por isso que eu não consegui sorrir quando fui escolhido para presidir a Anfavea.

RAIO-X | IGOR GALVET, 40

É graduado em relações internacionais pela Universidade de Brasília e com doutorado em ciência política pela mesma instituição. Ingressou na Anfavea em 2023 como diretor-executivo. Foi secretário de Indústria e Competitividade (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio), secretário Especial de Produtividade (Ministério da Economia) e presidente da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial).



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