MITsp faz dez anos, com arte ancestral e força coletiva – 12/03/2025 – Ilustrada


“Uma obra com novas formas não tem fim”, diz a atriz Marcela Guerty, antes de soltar uma daquelas risadas que, de tão longas, passam a ser constrangedoras. A frase do personagem Boris Aleksievich, no início da peça “Gaivota”, indica que a releitura argentina do clássico de Anton Tchékhov, com dramaturgia de Juan Ignácio Fernandez e direção de Guillermo Cacace, será uma exegese do texto original. Por isso, as alterações da remontagem são tão precisas, como sugere o próprio título, que suprime, com discrição, o artigo definido “a” de “A Gaivota”.

Em cena, cinco mulheres contam a história dos 13 personagens criados por Tchékhov. Elas vestem a roupa do corpo e se sentam ao redor de uma mesa, onde estão servidos pães, queijos e vinhos. Além de Guerty, as atrizes Romina Padoan, Raquel Ameri, Muriel Sago e Clarissa Korovsky falam em microfones, como se apresentassem um podcast. Não se trata, porém, de uma leitura dramática. Toda a ação se concentra na articulação da fala e do texto.

Pensando novos formatos, a montagem argentina integra a programação deste ano da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, que há uma década busca tensionar os limites da linguagem teatral, abarcando produções radicais de diferentes partes do mundo. A décima edição será aberta, nesta quinta-feira, num evento para convidados, no Teatro do Sesi.

“A escolha por cinco mulheres não foi motivada por uma agenda progressista ou identitária”, diz Cacace, ressaltando que representa um coletivo. “O objetivo foi conferir às personagens uma sensibilidade maior, inclusive para representar os defeitos masculinos sem caricatura.”

Publicada no fim do século 19, a dramaturgia original é centrada na figura Trepliov, que é filho de Arkádina, uma famosa atriz. Ao apresentar sua nova peça para o círculo social da mãe, Trepliov tem sua arte rejeitada pela elite intelectual.

Em paralelo, Nina, sua amada, se apaixona pelo escritor Trigorin, o amante de Arkádina. A nova releitura valoriza a personagem secundária Masha, como observadora da trama. Estreada há dois anos em Buenos Aires, a peça se tornou um êxito do teatro argentino.

“Gaivota” acabou de ser apresentada no Festival Next Wave, em Nova York, e obteve sucesso na Europa, em países como França e Espanha. Na visão de Cacace, o feito deve ser celebrado, considerando a ascensão ao poder do presidente Javier Milei, de ultradireita, na Argentina. “Qualquer gesto artístico que se posicione contra o governo é atacado”, diz ele. “Milei está ameaçando cortar a verba do Instituto Nacional do Teatro, o que é um perigo bem concreto.”

Nas próximas duas semanas, outros três espetáculos internacionais ocuparão os teatros da capital paulista —”Vagabundus”, do coreógrafo moçambicano Idio Chichava, “A Vida Secreta dos Velhos”, do diretor libanês Mohamed El Khatib e “Dambudzo”, de Nora Chipaumire. Nascida no Zimbábue, ela é a artista em foco desta edição e apresentará ainda o processo criativo de seu novo espetáculo.

De acordo com Antonio Araujo, diretor artístico da MITsp, a presença de Chipaumire representa um dos eixos conceituais da mostra deste ano, que é mesclar cultura folclórica e arte contemporânea. “Há um preconceito com as manifestações artísticas tradicionais”, afirma Araujo. “Queremos mostrar que a arte ancestral não é algo do passado e pode se combinar a tendências que estão sendo debatidas agora.”

Não à toa, a MITsp homenageia o multiartista pernambucano Antonio Nóbrega, que apresentará o espetáculo “Mestiço Florilégio”. Araujo diz ainda que a maioria das obras selecionadas para a MITsp é encenada por elencos numerosos, num contraponto à onipresença de monólogos na cena paulistana e nos festivais, que preferem produções enxutas e mais econômicas. Desse modo, o diretor artístico pretende ressaltar a natureza coletiva da arte teatral.

Em paralelo às atrações estrangeiras, a plataforma MITbr, dedicada à produção brasileira, apresenta nove obras, sendo uma estreia nacional, caso de “Réquiem”, nova coreografia de Alejandro Ahmed, apresentada pelo Balé da Cidade de São Paulo.

No recorte nacional, o carioca Wallace Ferreira é o artista em foco. Conhecido pelo nome artístico Patyfudida, o bailarino vai apresentar a coreografia “Repertório nº 3”, em parceria com Davi Pontes.

Ao longo de dez anos, a MITsp apresentou encenações marcantes, que inflamaram debates na sociedade. Na primeira edição, militantes em defesa dos animais pararam a peça “Eu Não Sou Bonita”, da espanhola Angélica Liddell, que contracenava com um cavalo. Sem saber que o animal recebia cuidados especiais e estava acostumando com a função, o grupo leu um manifesto e deixou o teatro.

Em 2015, “Stifters Dinger”, do alemão Heiner Goebbels, enfureceu a classe artística ao abolir a presença do ator, deixando apenas uma engrenagem no palco. Dois anos mais tarde, “Branco”, de Alexandre dal Farra, causou polêmica ao tratar a branquitude e a questão racial, sem a inclusão de atores negros.

Em 2018, primeiro ano da MITbr, a performance “A Gente se Vê Por Aqui”, de Nuno Ramos reproduziu, com dois atores, a programação da TV Globo, durante 24 horas.

Agora, a MITsp chega à décima edição abalada por dificuldades orçamentárias. Metade das atrações previstas precisou ser cancelada por falta de patrocinadores. A mostra captou R$ 3,1 milhões e precisava de mais R$ 2,5 milhões para atender toda a programação planejada.

“Recuperamos a noção de teatro como ágora, espaço em que a população pode discutir temas importantes”, diz Araujo. “Para os próximos dez anos, gostaria de fazer a mostra com mais dignidade e menos precariedade, com apoios garantidos por um tempo maior. Todo ano começamos a captação do zero.”



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