O dilúvio – 15/03/2025 – Antonio Prata


Domingo de Carnaval, estava deitado numa rede, na varanda de uma casa de praia, quando começou a ventania. Do chão, ao meu lado, uma almofada de uns 50 cm x 50 cm alçou voo feito um ganso apavorado com a chegada de seis pitbulls enfurecidos. Você pode achar que exagero na imagem ou pelo menos no número de pitbulls enfurecidos, mas, se visse a almofada alada sobrevoando um pula-pula (desses grandes, com rede de proteção colorida, coisa de bufê infantil, valeu cada centavo do Airbnb) e aterrissando uns 20 metros adiante, concordaria comigo.

Árvores grossas como postes pareciam girar bambolês nos pescoços, de modo que entrei na casa e fiquei embaixo de um batente, com medo de que uma jaqueira –ou mesmo alguma jaca— desabasse no telhado. “Foi a ventania mais forte que eu vi em 47 anos de vida”, fiquei repetindo aos amigos que encontrei durante toda a semana.

“Toda a semana”, não, porque na quinta, em São Paulo, veio o dilúvio —e o vento da praia ficou parecendo a brisa na letra de “Tarde em Itapuã”, causando o “diz-que-diz-que macio/ Que brota dos coqueirais”. Era tanta água que eu não enxergava o prédio a uns 30 metros do meu. A cortina branca não descia do céu: corria na horizontal. Os vidros da área de serviço chacoalhavam como se dezenas de membros de uma torcida organizada estivessem tentando derrubar o alambrado do campo para bater no juiz –e o juiz, no caso, era eu.

Entrei pelo apartamento com medo de ter deixado alguma janela aberta. O quarto do meu filho e o da minha filha estavam alagados, mas com as janelas fechadas. Demorei um pouco pra atender (ou pra aceitar?) que a água brotava pelo trilho em que corre o vidro; cascateava pela parede e se espraiava pelo chão. Nem pensei em panos, catei logo todas as toalhas do armário e joguei sobre as Cataratas do Iguaçu.

Na varanda, a churrasqueira a bafo de 95 quilos —tenho dificuldade para movê-la, apesar das rodinha— parecia o robô R2-D2 fugindo dos stormtroopers em Star Wars. Só parou ao atingir o vaso de um limoeiro, talvez mais pesado do que ela e que foi jogado meio metro pra frente.

Não sei quanto tempo depois (20 minutos? Oito horas?) a chuva passou. A cortina branca desapareceu. Duas árvores caídas só no meu quarteirão. Uma delas levou consigo um poste de luz e uma placa. Um rio descia a Angélica com sacos de lixo pretos e azuis competindo no triste rafting do Apocalipse.

Eu sei que uma almofada voando feito um ganso sobre um pula-pula, árvores com bambolês, janelas chacoalhando como se uma torcida organizada tentasse invadir o campo, uma churrasqueira-robô de Star Wars fugindo das tropas do Império e rafting de lixo não foi exatamente o que previu São João para o Apocalipse. O último livro da Bíblia fala mais sobre rios de fogo, lagos de sangue, chuva de enxofre, gafanhotos gigantes a aferroar eternamente as cacundas dos ímpios, mas não se pode pedir ao nobre autor, escrevendo há quase 20 séculos, que previsse pula-pulas, bambolês, torcidas organizadas, rios de lixo ou George Lucas.

Separados por 2.000 anos, mas unidos pela certeza e a insistência renitentes de uma Testemunha de Jeová –São João mais pra cúmplice de Jeová, eu mais pra réu– passamos a mesma mensagem: “o fim está próximo”. Ou melhor, o fim já começou. Não por conta dos pecados dos hereges, mas por causa dos combustíveis fósseis que queimamos para ir de carro à padaria da esquina ou para carregarmos os celulares em que veremos influencers de sobrancelha ou perderemos dinheiro no jogo do tigrinho. Seria trágico se não fosse cômico.


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