‘Marco zero’ das emendas faz 10 anos e transforma política – 15/03/2025 – Poder


“Alforria do Legislativo” foi o termo usado pelos deputados e senadores, dez anos atrás, para celebrar a mudança na Constituição Federal que hoje é considerada o ponto de partida para a disparada das emendas parlamentares no Brasil.

Foi a emenda constitucional 86, promulgada em 17 de março de 2015, que obrigou o Executivo a pagar as emendas individuais pedidas pelos congressistas e inaugurou um período de controle cada vez maior do Orçamento pelo Legislativo, mudando a forma de fazer política no país.

Na prática, o que se viu na última década foi uma aplicação desses recursos marcada pela falta de transparência, ausência de critérios técnicos, clientelismo e, em muitos casos, corrupção.

O governo, que antes tinha o controle total sobre a liberação das emendas e usava essas verbas em troca de apoio, perdeu capacidade de negociar e hoje tem como instrumento de pressão apenas os prazos de pagamento. Já os parlamentares ganharam mais autonomia e influência em suas bases eleitorais.

Os problemas no emprego das emendas levaram o Judiciário a intervir, e hoje há a uma queda de braço entre o STF (Supremo Tribunal Federal) e parlamentares que insistem em manter brechas para ocultar os nomes dos padrinhos das emendas.

O episódio mais recente do embate ocorreu na última quinta (13), quando o Congresso, a pretexto de atender as exigências de transparência da corte, aprovou uma resolução que permite que os líderes partidários assinem as emendas de comissão, sem a identificação do autor original.

Dez anos atrás, quando a alteração constitucional 86 estava sendo discutida, o impasse se dava no sentido contrário, com os congressistas criticando o controle do governo sobre as emendas, criadas na Constituição de 1988.

“[Tornar o pagamento desses recursos obrigatório] vai acabar com a prática humilhante de ficarmos nas portas dos ministérios em busca da liberação de uma emenda que é um instrumento legítimo desta Casa”, defendeu na época o relator do projeto, o ex-deputado Edio Lopes (então no PMDB-RR).

Segundo a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), coordenadora da Frente Parlamentar de Fiscalização, Integridade e Transparência, o objetivo da nova regra era acabar com a barganha, dando direitos iguais às emendas a todos os parlamentares: “Mas na prática só estipularam um piso, e as pessoas ficaram ávidas por mais”, diz.

O efeito, então, foi apenas um crescimento vertiginoso no volume do dinheiro público barganhado. Em uma década, os R$ 6 bilhões que os congressistas possuíam em emendas (em valores corrigidos) se diversificaram e explodiram para cerca de R$ 50 bilhões previstos neste ano no total.

Naquela época, cada parlamentar tinha direito a no máximo R$ 16 milhões individualmente (o equivalente a R$ 26 milhões hoje). Agora, cada deputado tem à disposição R$ 38 milhões, e cada senador, cerca de R$ 70 milhões para mandar a seus redutos eleitorais, sem contar os outros tipos de emendas coletivas.

A expansão foi permitida sempre com o apoio de partidos de todos espectros políticos, seja da base ou da oposição. A emenda constitucional 86, por exemplo, foi aprovada com 452 votos a favor e apenas 18 contra na Câmara.

O contexto em 2015 era de enfraquecimento da Presidência de Dilma Rousseff (PT), que sofreria um impeachment pouco mais de um ano depois. Dois dias antes da promulgação da mudança, milhares foram às ruas para protestar contra a sua gestão e apoiar a Operação Lava Jato.

Eduardo Cunha (hoje no PRD-RJ) acabara de ser eleito presidente da Casa, com a promessa de pautar a votação.

O advogado José Eduardo Cardozo, então ministro da Justiça, diz que o governo era “radicalmente contrário” à obrigatoriedade do pagamento das emendas, mas não teve força política para frear a ideia: “O governo tinha perdido a maioria [no Congresso], não tinha alternativa”.

“Então ela [Dilma] senta e conversa para dialogar sobre isso, mas foi quase uma rendição”, conta. “É um processo que já vinha com o tempo. A Constituição de 1988 já tinha dado poderes muito fortes ao Legislativo. Até que chega nesse ponto, em que se aproveita um momento de fragilidade do Executivo.”

Os parlamentares reclamavam, por exemplo, do uso político das verbas, do acúmulo dos empenhos no fim do ano —dificultando a execução de convênios— e do poder exagerado de ministros e burocratas sobre o Orçamento, defendendo que parlamentares conhecem melhor as necessidades dos seus estados e municípios.

Usando esses argumentos, o Congresso seguiu redesenhando o regime orçamentário a seu favor por meio de outras três emendas constitucionais, as de número 100, 105 e 126, todas aprovadas durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

A primeira, de 2019, obrigou o Executivo a pagar também as emendas das bancadas estaduais. No mesmo ano, a segunda criou as chamadas emendas Pix, transferidas diretamente aos caixas das prefeituras e estados. Em 2022, a terceira elevou o valor do teto das emendas individuais de 1,2% para 2% da receita corrente líquida do país.

O professor de direito constitucional da FGV Direito SP Oscar Vilhena afirma que Bolsonaro foi o presidente que teve, considerando mandatos presidenciais já completados, a menor taxa de dominância sobre o Poder Legislativo. “Ele foi o presidente com o menor número de projetos do Executivo aprovados pelo legislador. Um presidente fraco e que governou a reboque do Legislativo”, diz.

Levantamento feito por ele em parceria com a professora de direito constitucional da ESPM Ana Laura Barbosa mostra que durante gestão de Bolsonaro foi aprovado o maior número de emendas constitucionais nos últimos 35 anos, mas a maioria delas foi proposta pelo Legislativo.

No terceiro mandato de Lula, não há iniciativas para alterar o atual cenário das emendas parlamentares, e o protagonismo do combate à falta de transparência foi assumido pelo STF.

Para Gabriela De Brelaz, professora de administração pública da Unifesp, o país deveria voltar ao modelo de dez anos atrás: “O valor antigo era ok e tinha transparência. Hoje aumentou quatro vezes, além do fundo eleitoral que também cresceu radicalmente. Tudo isso é verba para o parlamentar deitar e rolar. Isso define quem ganha as eleições, define a democracia”.

A Folha procurou as assessorias de imprensa do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), do relator do Orçamento de 2025, o senador Angelo Coronel (PSD-BA), e do ex-presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mas nenhum dos congressistas atendeu ao pedido de manifestação da reportagem.



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