História sobre lítio e transformações globais assimétricas – 19/03/2025 – Latinoamérica21


Aapo se levantou, olhou o Mar Báltico e contemplou o sucesso da transformação social e ambiental. Seu carro elétrico simboliza o êxito da transição energética de seu país. Em breve, todos os veículos serão elétricos, movidos a baterias de lítio, um recurso considerado limpo e seguro. Para Aapo e seus compatriotas, essa mudança representa progresso e sustentabilidade.

Do outro lado do mundo, Amaru sai para pastorear suas lhamas. Encontra menos água e comida, pois o lítio é extraído perto de sua aldeia. Novas infraestruturas surgiram, como uma escola e um campo de esportes, mas sua comunidade sente que algo se perdeu junto com o recurso. A terra já não é a mesma, e o equilíbrio ambiental foi comprometido.

Vivemos em um mundo interconectado, onde decisões tomadas em um continente afetam regiões distantes. A ciência estuda esses fluxos de matéria e energia entre locais afastados, conhecidos como “teleacoplamentos”, que interligam ecossistemas e sociedades. As baterias de lítio que alimentam carros elétricos na Europa e na Ásia dependem de um processo extrativo intensivo no Sul Global, gerando impactos invisíveis para quem consome esses produtos.

O lítio usado nos veículos como o de Aapo é extraído das salinas andinas. Esse processo exige a evaporação de grandes volumes de água, incluindo o uso de água doce subterrânea, essencial para um ecossistema árido.

A Puna, onde Amaru vive, faz parte do “triângulo do lítio” (Bolívia, Chile e Argentina), região que concentra mais de 60% das reservas mundiais desse mineral. O interesse de empresas multinacionais e governos locais cresce constantemente devido ao seu valor estratégico e econômico. Entretanto, os benefícios para as comunidades locais são mínimos, enquanto os danos ambientais e sociais se acumulam.

A exploração do lítio pode levar ao ressecamento de áreas úmidas, perda de biodiversidade e danos irreversíveis aos ecossistemas. No Chile, o Salar de Atacama já sofre com o rebaixamento dos lençóis freáticos, que caíram até 10 metros, além do afundamento do solo. Na Argentina, fenômenos semelhantes estão sendo observados. Sem água, as paisagens que sustentam modos de vida ancestrais desaparecem, e com elas, a identidade de povos tradicionais.

A transição energética deve ser justa e sustentável. Atualmente, o lítio sul-americano abastece a China e o Norte Global, mas os países produtores continuam exportando apenas a matéria-prima, sem agregar valor ao recurso. Para mudar esse cenário, é essencial desenvolver métodos de extração menos agressivos, além de garantir maior participação local na cadeia produtiva, promovendo a fabricação de baterias e outros componentes dentro da própria região.

Em 2023, a União Europeia aprovou o Regulamento Livre de Desmatamento (EUDR), exigindo rastreabilidade de commodities como carne e grãos, para garantir que sua produção não esteja associada ao desmatamento. Medidas similares poderiam ser aplicadas ao lítio,garantindo que sua extração não comprometa o meio ambiente nem as comunidades locais. Esse tipo de política pode representar um primeiro passo para um comércio global mais responsável.

Aapo e Amaru vivem realidades opostas, mas fazem parte do mesmo planeta. Para que a transição energética seja verdadeiramente sustentável, é fundamental considerar os impactos ambientais e sociais de cada etapa do processo, desde a extração até o consumo. Somente assim será possível equilibrar progresso e preservação, garantindo um futuro viável para todos.


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