Romance colaborativo ‘Catorze Dias’ só vale por empreitada – 21/03/2025 – Ilustrada


“Catorze Dias” é, mais que um livro, um projeto. Como informa o subtítulo, trata-se de um romance colaborativo, organizado pela celebrada autora canadense Margaret Atwood ao lado do jornalista americano Douglas Preston e escrito a mais de 70 mãos.

A iniciativa nasceu do objetivo de arrecadar fundos para a Authors Guild of America, instituição destinada a apoiar escritores na pandemia de Covid-19, quando tantos profissionais autônomos se viram sem as atividades que lhes garantiam a sobrevivência.

A empreitada merece ser celebrada, pois a um só tempo chama atenção para a precarização da profissão —mesmo no mercado de língua inglesa, mais amplo que o de língua portuguesa— e propõe uma maneira de enfrentá-la com suas próprias armas.

Além disso, é de fato uma “façanha impressionante”, como propagandeia a frase do jornal The Guardian estampada na quarta capa, já que, apesar de escrito por 36 autores, o texto apresenta uma costura que quase sempre resulta, em sua polifonia, natural para o leitor.

A narrativa é conduzida em primeira pessoa por uma jovem mulher que acaba de aceitar o trabalho como zeladora em um prédio decadente de Nova York. O tempo é de lockdown: na cidade restam apenas aqueles que não conseguiram fugir para o interior e que vivem, entre março e abril de 2020, sob restrições de circulação.

Tendo aprendido o ofício com o pai —um imigrante romeno que agora, acometido pelo Alzheimer, encontra-se internado em um lar para idosos—, a narradora mal consegue desempenhar seu serviço, já que os donos do condomínio estão sumidos.

Seu tempo, porém, será todo ocupado pelos moradores do prédio. Além de realizar pequenos reparos nos apartamentos ao longo dia, ela participa daquilo que vai se estabelecendo como ritual entre os habitantes do local. No fim de tarde, todos sobem para o terraço, participam dos aplausos dirigidos diariamente pelos moradores da cidade aos profissionais de saúde atuando no combate ao vírus e, em seguida, conversam.

Conhecemos todos esses diálogos graças às anotações que a zeladora faz em um caderno deixado por seu antecessor na função. A cada um desses dias corresponde um capítulo, e a cada dia alguns personagens tomam a palavra.

Por conta dessa estrutura, o livro vem sendo divulgado como herdeiro do “Decamerão”, o clássico de Giovanni Boccaccio que reúne novelas contadas por jovens fechados em um castelo durante a peste negra.

A comparação é mencionada pelos próprios personagens, e uma deles o chama de “um dos clássicos do cânone dos Homens Brancos Mortos”. A obra florentina foi escrita no século 14, vale lembrar, sendo anterior ao surgimento do romance moderno —anterior, portanto, às narrativas dedicadas a destinos individuais, para resumir grosseiramente.

Em “Catorze Dias”, são justamente os indivíduos solitários que vêm à tona. Dos encontros no telhado, surge entre esses estranhos a vontade de acolher e respeitar o outro, mesmo com as animosidades surgidas da aproximação. Um deles chega a afirmar que essas reuniões são como “uma afirmação de nossa humanidade diante do horror e da banalidade de um vírus”.

A narrativa é ligeira e, apesar de suas quase 400 páginas, lida rapidamente. É possível notar o domínio da técnica pelos autores —entre eles, John Grisham, Dave Eggers e Celeste Ng—, que procuram cuidar das situações capazes de, por falta de verossimilhança, despertar desconfiança dos leitores.

Isso vale tanto para um aspecto maior da trama (como a existência da “bíblia” deixada pelo antigo zelador) como para os detalhes —mas é deixado de lado no desfecho tão imotivado quanto surpreendente, do qual convém não dar spoiler.

A consciência de se estar fazendo o bem acaba por ganhar protagonismo na trama, pasteurizando toda a gama de sentimentos que poderiam surgir das situações retratadas —e das quais a boa literatura, livre de moralismos, sempre soube tirar proveito, a exemplo do “Decamerão”.

O romance parece mais próximo da linguagem das séries de streaming: se cada capítulo fosse um episódio, a moldura lhe serviria de abertura e fechamento, e a inserção meramente individual dos personagens permitiria prolongar a trama pelas temporadas que fossem desejadas. O retrato da humanidade edificante proporcionaria ao espectador a escolha de um passatempo seguro, como costumam ser as produções no gênero.

São misteriosos os caminhos que tornam a literatura uma afirmação contra o horror e a banalidade. Neste caso fiquemos, então, com o elogio do projeto.



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