Celso Amorim diz que Trump é o interesse ‘nu e cru’ – 22/03/2025 – Mônica Bergamo


Um dos mais experientes diplomatas do país, o ex-chanceler e hoje assessor especial de Lula (PT) Celso Amorim afirma que o mundo está diante de uma das maiores transformações estruturais da história recente.

A chegada de Donald Trump à presidência dos EUA, diz ele, acabou com certa hipocrisia do multilateralismo.

Desafiando a ordem mundial até então vigente e renegando a condição de superpotência, o atual presidente defende exclusivamente os interesses de seu país, “de forma deslavada”, e é preciso se reorganizar diante de novos desafios.

Questionado se Trump poderia aderir à tese bolsonarista de que o Brasil vive sob uma ditadura judicial, Amorim afirma que Jair Bolsonaro (PL) “ficou pequeno diante das grandes questões do mundo” e que o presidente norte-americano respeita o poder, e não quem “fica lá querendo adular”.

TRUMP

O mundo parece estar mudando de maneira célere. A governança pós-Segunda Guerra Mundial passa por um desmonte. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, diz que não é mais normal termos uma potência unipolar e que rumamos para um mundo multipolar. Como o Brasil se insere neste novo contexto?

Nós estamos vivendo, de certa maneira, a hora da verdade.

Os EUA e a Rússia foram os principais vitoriosos [da Segunda Guerra], mas os EUA tinham muito mais influência. E construíram um mundo à imagem e semelhança do que desejavam —com diferenças com a União Soviética e, depois, com a China.

Na letra, essa era a ordem internacional vigente.

Havia conflitos. Mas, de alguma maneira, havia uma defesa dessas regras internacionais.

O primeiro grande abalo nessa ordem foi a queda do muro de Berlim [em 1989] e a dissolução da União Soviética, algo que ninguém imaginava que poderia acontecer.

O mundo também muda de forma inesperada.

A minha geração passou por duas transformações estruturais imensas. A primeira foi o fim da União Soviética. E agora temos outra enorme mudança, imensa, com os americanos renegando a ordem que eles mesmos criaram.

Desde a queda de Berlim até agora, os EUA atuavam como uma potência praticamente incontrastável. O que mudou?

Havia, de certa maneira, a aceitação de que os EUA eram a única potência remanescente. Mas eles procuravam, sempre que possível, conduzir [as políticas internacionais] pelo multilateralismo.

Faziam isso pela ONU. Quando não dava certo, faziam pela Otan. Raramente agiam sozinhos nos grandes problemas internacionais.

O Trump atual não quer saber [dessas estruturas multilaterais]. Ele não esconde o autointeresse.

É uma atitude de absoluta franqueza. Não há hipocrisia. Ele quer a Groenlândia não porque é bom para a paz, mas por causa do minério do país. Diz isso a propósito da Ucrânia também.

Eu acho que o Trump olha para a extensão imensa da Rússia, um país que tem 12 fusos horários, e imagina as possibilidades de investimento. Não quer ficar totalmente brigado com a Rússia.

Em sua declaração, Marco Rubio disse “não queremos uma Rússia que seja totalmente dependente da China. E também não queremos que eles fiquem inimigos a ponto de ameaçar com uma guerra nuclear”. É uma declaração surpreendentemente sensata.

Por que o senhor diz que chegou a hora da verdade?

Porque é o interesse nu e cru, que não é disfarçado. E isso pode até servir para alguma coisa positiva

Na conversa com [o presidente da Ucrânia, Volodimir] Zelenski [no começo de março, na Casa Branca], que foi muito rude, Trump disse uma coisa interessante: “Ele [Zelenski] quer a vitória. Eu quero a paz”. E é verdade também.

Trump fala em desnuclearização. E não faz isso porque é bonzinho. Faz porque sabe que o custo para manter a paridade [de armamentos] com a Rússia é enorme. Para diminuir o gasto militar, ele tem que ter paz, primeiro com a Rússia, depois com a China.



Os europeus estão desorientados. Eles se acostumaram a viver sob o guarda-chuva americano moral, militar e econômico. Quando de repente chega um presidente americano e diz ‘eu vou cuidar do meu interesse, vocês que se virem’, eles ficam totalmente perplexos, impactados

O multilateralismo tem um pouco de teatro, e Trump está acabando com ele?

O [francês François de] La Rochefoucauld dizia que a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude. Ela às vezes vale a pena, porque é civilizatória.

Quando há soluções compatíveis com as regras, a situação sempre melhora. Os EUA acabavam aceitando as regras. Não vejo isso acontecer com o Trump.

É a verdade nua e crua.

É a verdade nua e crua. Ele não faz parecer que defende a Ucrânia porque defende a democracia no mundo, o que era discutível: os EUA defendiam a democracia quando interessava.

Essa política, digamos assim, um pouco missionária [dos EUA] não existe mais. Ele [Trump] vai defender os interesses dos EUA de maneira deslavada, e nós temos que nos reorganizar diante disso.

EUROPA

Como a Europa também está sendo obrigada a fazer?

Os europeus estão desorientados. Eles se acostumaram a viver sob o guarda-chuva americano moral, militar e econômico. Quando de repente chega um presidente americano e diz “eu vou cuidar do meu interesse, vocês que se virem”, eles ficam totalmente perplexos, impactados.

A Europa, se fosse esperta e menos apegada a certos conceitos, assinava o acordo Mercosul- União Europeia. Seria importante. Mostraria que ela ainda tem uma presença no mundo, que atua independentemente.

O Brasil sempre teve a pretensão de ser a ponte entre o Ocidente e o sul global, e agora isso está virando de ponta-cabeça. Como fica o país nesse novo contexto?

O Sul Global não virou de ponta cabeça. O Sul Global está se fortalecendo.

O senhor acredita que os EUA vão mesmo renegar o seu papel de única potência mundial?

A percepção de que eles não são mais a única potência é correta. É um fato. A China já ultrapassou os EUA em muitas questões, no PIB, no poder de compra, até em número de estudantes que fazem doutorado.

MUNDO MULTIPOLAR

E o Brasil agora?

Nós temos que aprender a viver nesse mundo multipolar. Brasil, Índia, não somos todos iguais. A gente tem que saber jogar com alianças variáveis, temos que ser capazes de ter amizades com vários países

É difícil porque existe muita diversidade, mas nós temos que fortalecer a América do Sul. E, ao mesmo tempo, nos relacionarmos de maneira inteligente com as superpotências —que são duas do ponto de vista econômico [EUA e China] e três do ponto de vista militar [as duas e mais a Rússia]. Em seguida vem a Europa. Temos que saber jogar com isso.

Há analistas que acreditam que Donald Trump, dos EUA, Xi Jinping, da China, e Vladimir Putin, da Rússia, vão se entender e dividir o mundo, embora muitas partes dele não caibam nessa divisão. O senhor acha que isso vai acontecer?

Eu não posso dizer que essa é a visão do presidente Trump, porque eu não sei. Ele não falou isso. Mas às vezes dá a impressão de que é isso.

[Nesse contexto] O Brasil pode ser uma potência grande, que será mais forte se estiver unida com a América do Sul. Mas o Brasil fez uma opção de não ter arma nuclear, então isso, de certa maneira, muda…

Nos enfraquece?

Eu não sei se nos enfraquece porque podemos ter mais meios de negociar.

Por que a China não lançou sozinha a proposta de seis pontos pela paz na Ucrânia? Porque ela precisa do soft power, que o Brasil tem, e muito. É um país pacífico, que tem fronteiras com dez países e está há 150 anos sem guerra. Eu não quero valorizar demais o soft power, mas ele dá credibilidade.

Nós temos que ter uma relação muito forte com a China.



Trump respeita o poder. Pessoas que são capazes de agir. Ele acaba de dizer que gosta do Putin. E pode até não gostar, mas ele respeita o Putin. Respeita o Xi Jinping. Agora, se ficar lá querendo adular, como [fizeram] o Zelenski e alguns europeus, ele não respeita

Mas já temos, não?

Sim, mas ela tem que se fortalecer. Temos que jogar com as três [superpotências]. E com a Europa. Se ela se associa à América do Sul, já seremos uma massa maior de países.

Está claro que a Europa, por exemplo, vai ter que se reinventar…

[interrompendo] A Europa vai ter que se libertar da obsessão de que vai ser invadida pela Rússia. Eu até entendo que a Polônia, os países ali fronteiriços [tenham essa preocupação].Mas quando eu vejo dizerem que a Rússia tem um DNA expansionista, eu penso: foi Napoleão que invadiu a Rússia [em 1812], ou foi o contrário?

E a França tem a força da dissuasão da bomba nuclear, certo?

[O general e ex-presidente da França Charles] De Gaulle não tinha essa obsessão, e na época dele a União Soviética era muito mais forte.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o que sempre criticamos, muitos [países] disseram “vamos destruir a Rússia”.É impensável. E seria desastroso. A Rússia unificada é também um fator de estabilidade para o mundo e para a Europa.

BRASIL NO MUNDO

O senhor diz que o fortalecimento da América do Sul é importante, mas o continente hoje está dividido. Argentina e Venezuela, por exemplo, estão distantes do Brasil.

Eu concordo. Sempre digo que o primeiro mandato [de Lula, em 2002] era um mundo de oportunidades. Agora, é um mundo de desafios.

É claro que há casos extremos [de comportamentos de países] que fogem a qualquer regra. Mas acho que, a médio prazo, a maioria dos países da América do Sul vai voltar a se unir.

Na votação da OEA [Organização dos Estados Americanos], o candidato [à presidência da entidade] que foi lá tirar fotografia com o presidente Trump, por exemplo, não foi aceito [foi derrotado na eleição].

A gente não pode ficar… o meu temor com relação aos EUA não é que eles vão invadir [algum país do continente sul-americano]. [É com o fato de que] Os trumpistas falam muito em Western Hemisphere [Hemisfério Ocidental]. A visão deles é a de que “aqui é nosso”.

Essas coisas não ficavam tão claras antes do Trump?

Não. Porque os democratas eram mais educados. Muitos deles são nossos amigos, tiveram um papel importante aqui na transição [do governo Bolsonaro para o de Lula], a gente sabe disso.

Mas o nosso grande desafio, resumindo, qual é?

O nosso grande desafio é, nessa divisão do mundo, não ser colônia de ninguém.

O senhor não acha que deveríamos fazer um esforço maior de aproximação com Trump? Vê possibilidade de ele aderir à tese bolsonarista de que vivemos sob uma ditadura judicial?

Trump está com o foco em outras questões. Eu acho que agora, com as tarifas [de importação que o governo norte-americano está impondo ao Brasil], a gente vai ter que falar um pouco mais com o governo dele. Vamos ter que agir da maneira normal, que é a da reciprocidade.

Mas o Brasil tem força para isso? A reciprocidade não pode trazer mais prejuízos do que benefícios para o Brasil?

Acho que não.

Você não pode dar um tiro no pé, colocar taxa em um produto essencial para o país, como o carvão siderúrgico, por exemplo. Mas há áreas no setor de serviços, de propriedade intelectual, de remessa de lucros, que, se o Brasil morder, eles vão pensar duas vezes antes de botar tarifa contra nós.



[Sobre as big techs] Elas estão mais ou menos entendendo que o jogo é complexo, que o Brasil não vai abrir mão de sua soberania. Se quiserem atuar aqui, têm que ser de acordo com as nossas regras, que não são arbitrárias. São para todos, são para proteger os cidadãos

BOLSONARISMO

O ministro Alexandre de Moraes tem afirmado que a soberania brasileira corre risco pelo fato de as big techs estarem partindo para o tudo ou nada, desrespeitando inclusive a jurisdição de outros países que não os EUA. O senhor concorda com ele?

O Alexandre de Moraes está fazendo um trabalho muito importante.

Os americanos sempre tiveram a visão da extraterritorialidade da lei americana. Mas agora eles têm a possibilidade técnica para [efetivar] isso.

E as big techs estão no coração dos EUA. A posse de Trump, com os donos de diversas delas, como Elon Musk, mostrou isso, não?

Em algum momento pode haver algum choque. São egos muito grandes ali. Eu acho que vai acabar havendo uma diferença entre as big techs, que têm um interesse puramente econômico, e a política.

Há avaliações, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), de que os bolsonaristas estão pegando carona em uma briga maior, que é a das big techs contra o nosso Judiciário. O senhor concorda com elas?

O Bolsonaro ficou pequeno diante das grandes questões do mundo hoje.

Há alguns anos, certamente ter um governo de extrema-direita no Brasil era importante. Hoje é um pouco diferente.

[Sobre as big techs] Elas estão mais ou menos entendendo que o jogo é complexo, que o Brasil não vai abrir mão de sua soberania. Se quiserem atuar aqui, têm que ser de acordo com as nossas regras, que não são arbitrárias. São para todos, são para proteger os cidadãos. A Europa tem uma visão parecida com a nossa.

O senhor acha que para o Trump tanto faz se o presidente é Bolsonaro ou Lula?

Eu não sei se tanto faz. Mas hoje em dia não tem mais sentido você dizer “sou contra ele porque ele é comunista”. Não tem mais isso. É o interesse [que prevalece]. Essa coisa muito ideológica do bolsonarismo eu acho que talvez se esvazie.

Trump respeita o poder. Pessoas que são capazes de agir. Ele acaba de dizer que gosta do Putin. E pode até não gostar, mas ele respeita o Putin. Respeita o Xi Jinping.

Agora, se ficar lá querendo adular, como [fizeram] o Zelenski e alguns europeus, ele não respeita.



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