Augusto de Campos se despede da poesia inquieto e mordaz – 22/03/2025 – Ilustríssima


[RESUMO] Principal escritor brasileiro vivo, Augusto de Campos lança seu último livro de poemas. Em entrevista, ele comenta os motivos da despedida, ressalta a importância de uma poesia que confronte os desajustes do mundo, lamenta a ascensão de uma direita autoritária internacional, analisa os paralelos entre poemas e canções e suas recentes descobertas na música popular, como Tim Maia, Xênia França e Amaro Freitas.

Na capa de “Pós Poemas”, sua despedida dos livros de poesia, Augusto de Campos aparece no alto de rochas apontadas contra o céu, na Serra do Rola-Moça, em Minas Gerais. Em 1963, na fotografia feita por Lygia de Azeredo, sua esposa, o poeta tinha 32 anos, participava da Semana de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, e concluía a obra-prima “cidade”.

Aos 94 anos, com um gestual não muito distante daquele do jovem do retrato, ele diz que o ponto final na criação poética não o afastará dos trabalhos de tradutor. “Sim, apenas traduções/interpretações. Poemas são gestações. Não dá mais pra mim.”

O último livro reafirma a “poesia da recusa” e o desejo de intervir no mundo. Num arco de 74 anos, de “O Rei Menos o Reino” (1951) até “Pós Poemas”, Augusto lançou duas dezenas de obras de poesia, a contar as edições do livro-revista “Noigandres”, esteio do grupo concreto fundado com Décio Pignatari e seu irmão Haroldo de Campos.

Nascido em São Paulo, em 1931, o poeta publicou 17 livros de ensaios e revisões críticas, 43 de traduções e, desde 2018, 24 plaquetes de “extraduções” pela editora Galileu. Ele ampliou o repertório de vanguardas poéticas em língua portuguesa, ao verter para o idioma Mallarmé e Ezra Pound, Gertrude Stein e James Joyce, Sylvia Plath e Dylan Thomas, entre outros, e influenciou não só poetas, mas músicos, cineastas, artistas plásticos, jornalistas, ensaístas e críticos de arte.

O livro de despedida preserva a poesia como o núcleo de mudança da vida e o vetor de interpretação do mundo. Na introdução, afirma que “a poesia hoje é uma prática de gueto, de artífices desarticulados”.

O poema final, o “Ex/isto” (1970) retirado do livro “colidouescapo”, não é a sua última palavra, mas uma palavra dobrada em sua história —ex-tudo e pós-tudo, o poeta demarca sua permanência e seu silêncio. Duas joias de 2021, “poesia é o que” e “poeta gueto”, entram no percurso autorreflexivo.

“Pós Poemas” tem seis seções. Os “contrapoemas” exprimem o confronto de Augusto com o fascismo em alta no país e o governo de Jair Bolsonaro, alvo de “omito” (2019), “já era” e “fora” (2022). O estímulo ao porte de armas, pautado pela extrema direita, surge em “educaixão” (2019).

O retorno aos poemas participantes —divulgados no perfil @poetamenos, no Instagram— foi impulsionado pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, e pela ascensão bolsonarista.

“A direita extrema, média ou mínima é sempre abominável. Sempre fui de esquerda. Mas também sempre anti-stalinista. À esquerda da esquerda, como gostava de se definir o poeta Iessiênin. Estudei russo com Boris Schnaiderman, um guia espiritual luminoso em literatura e em política. E sempre à luz do lema de Maiakóvski: ‘Sem forma revolucionária não há arte revolucionária’, que levei para justapor-se ao nosso manifesto”, diz o poeta.

“Trump é um mentecapto, horrível, grotesco, mas muito perigoso! Que ganhe a eleição nos EUA e seja ungido como presidente apenas evidencia o fracasso do capitalismo americano como líder da democracia: ‘Um conto tonto, dito por um idiota, som e fúria, signi/ficando nada.’ Guimarães Rosa diria que ele é a encarnação do demo. Demonocracia.”

Nem todos seus poemas políticos recentes entraram no livro. Augusto selecionou os mais perenes, acima das circunstâncias, e assim expressou o receio de um retorno da extrema direita à Presidência da República.

“Como o bolsotrumpismo continua solto por aí, é preciso reagir”, afirma. Noutra seção, o poema “Vertade” (2021) contém uma travessia vertical entre verdade e mentira, com as fontes em verde e vermelho no fundo preto, refletindo a confusa fronteira de fato e ficção no mundo das fake news. “Pretende ser um poema anti-fake, de certa forma também participante.”

“Os poemas políticos são pílulas antifascistas que estão na tradição do agitprop, o uso da linguagem poética para criar uma memória e uma posição frente ao estado de coisas. Numa época em que a linguagem política está tão degradada, esses poemas são necessários”, avalia o professor da Universidade de Buenos Aires, Gonzalo Aguilar, autor de “Poesia Concreta Brasileira” (Edusp).

“Existe outra política em Augusto que nem sempre é salientada. É a política da poesia mesma”, ressalta o crítico argentino. “Na tradução, com uma difusão democratizadora da poesia universal, no tratamento do sujeito lírico, onde o ‘ninguém’ abre o jogo de identificações, e na invenção com que o poeta cria uma comunidade e, ao mesmo tempo, procura o seu lugar, adentro e afora, com o prefixo ‘ex-’ que fecha o livro: expoeta existe.”

No livro, o poema “imortais” satiriza a Academia Brasileira de Letras (ABL) e reforça a crítica histórica dos concretos ao oficialismo literário e à mística da “imortalidade”. Em 2019, Augusto absorveu a estrutura de um anúncio empolado da instituição —”o acadêmico decano da casa/ entregou a espada/ o acadêmico/ fez a aposição do colar/ e o acadêmico/ a entrega do diploma”.

“O poema é quase um ready-made, aproveitando um comunicado expresso da própria Academia. Que para mim é ‘de riso motivo’, como diria Gregório de Matos”, diz Augusto. “Ready-made” é o gesto vanguardista de transpor um objeto pronto, preexistente, para a categoria de obra de arte.

“Clarice Lispector afirmou que não postularia a sua entrada na Academia porque se sentia mortal demais. Foi muito branda. Eu me sentiria mais morto do que vivo se fosse laureado com esse tipo de ‘imortalidade’.”

A despedida acontece ao mesmo tempo da reedição de “Poemóbiles” (1974), a caixa com 12 poemas-objeto tridimensionais concebida em parceria com Julio Plaza, relançada pelo Lote 42/ Selo Demônio Negro.

“Julio e eu fizemos uma parceria anímica. Desde o início, quando em vez de crítica fiz um poema para o seu álbum ‘Objetos’, com artes em recortes tridimensionais, nos entendemos sincronicamente. Respondíamos ‘sin esfuerzo’ às provocações artísticas que nos fazíamos, e assim vieram ‘Poemóbiles’, ‘Caixa Preta’, ‘Reduchamp’.”

Na fase ortodoxa da poesia concreta, até princípios dos anos 1960, a sincronia de elementos verbais, sonoros e visuais encontrou resistências no mundo intelectual brasileiro. Sete décadas depois dos primeiros manifestos do grupo Noigandres, Augusto reconhece que as ideias dos concretos são discutidas em terreno menos hostil por gerações jovens de poetas e críticos.

“Faz parte do jogo. Que ela [poesia concreta] sobreviveu, não há dúvida alguma. Basta consultar as inúmeras teses e dissertações, as antologias nacionais e internacionais, e até os livros didáticos para confirmar.”

Os recursos da inteligência artificial não lhe animam como a introdução de ferramentas de computadores na criação de poemas, no início dos anos 1990.

“Podem ajudar, mas ao menos que se trate de texto indeterminado, à la Cage, não vão adiantar. Servem para fornecer dados, lembretes, referências, estruturas, mas não para a criação propriamente dita. Serão bons coadjuvantes, quem sabe… ‘Beauty is difficult’ [a beleza é difícil]”, afirma, citando o Pound dos “Cantos”.

Cage —músico, teórico musical, artista visual e escritor— recorria aos hexagramas do I Ching, o livro chinês das mutações, para definir caminhos criativos. Assim procedeu na peça “Music of Changes” (1951). A indeterminação e o jogo com o acaso marcaram experiências de vanguardistas do século 20 e não vêm a ser uma novidade.

“John Cage, que ainda considero o maior poeta norte-americano, fez o uso do acaso nas peças. Eu tenho uma que ele me deu de presente. Não sei se você se lembra, mas foi aquela peça que tem oito placas, com palavras que ele colocou ao acaso, consultando o I Ching [Not Wanting to Say Anything About Marcel Duchamp, 1969]”, conta Augusto.

“Da tipologia das fontes usadas até a posição das letras, a interferência de imagens ou não, tudo foi decidido arbitrariamente com o I Ching. Ele jogava o I Ching e fazia a pergunta. Então, acho que todo tipo de acaso já foi feito a tal ponto que não sei o quanto a inteligência artificial poderá aumentar isso —a não ser, como eu digo, se for utilizada como armação, como recurso para fazer um poema.”

Em encontro em sua casa, no fim de 2024, o poeta recitou de cor trechos de poemas lidos na juventude. “O Lobisomem”, de Décio Pignatari, ou “La Casada Infiel”, de Federico García Lorca, ressurgiram de jorro.

Ele surpreendeu ainda ao apontar belezas em temperamentos poéticos diversos do seu, como ao elogiar um verso aliterativo do romântico Castro Alves —”Auriverde pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança”.

O brilho da memória e a velocidade das ideias contradiziam uma blague dita ali sobre os empecilhos da longevidade: “Hoje, quem faz 60 anos tem 50. Quem faz 70 tem 60. Quem faz 80 tem 70. Mas quem faz 90 tem 90 mesmo”.

Em outro dia, em busca dos originais de um livro no computador, Augusto encontrou de passagem um arquivo com “Perguntas”, de Carlos Drummond de Andrade —um dos poemas favoritos dele e de Pignatari em “Claro Enigma” (1951). Por um minuto, suspendeu a pesquisa e me pediu para ouvir a interpelação de Drummond a um fantasma.

“No voo que desfere,/ silente e melancólico,/ rumo da eternidade,/ ele apenas responde/ (se acaso é responder/ a mistérios, somar-lhes/ um mistério mais alto):// Amar, depois de perder.”

“Isso derruba a gente. Drummond é um caso sério”, disse, com admiração, ao encerrar a leitura.

Em abril de 2024, sua esposa por sete décadas, Lygia de Azeredo, morreu aos 92 anos. Nos meses seguintes à perda, junto com sua neta Julie Bozon, ele se dedicou a reler os escritos de Lygia em cadernos e pedaços de papel.

“É uma questão muito afetiva. Chorei muito escaneando os poemas dos seus papéis esparsos e do seu caderno. Mas não me proporia editá-los se não os considerasse dignos de publicação. Vanderley Mendonça, o editor-poeta, foi naturalmente fundamental pela sua compreensão e pelo seu entusiasmo pelo projeto. O livro, ‘Adormeço, Mereço?’, sai pela rubrica da editora Cobalto.”

Sem Lygia, sua primeira leitora e inspiradora de poemas, ele se dedicou à consultoria da reedição de “Poesia Pois é Poesia”, de Pignatari, e às plaquetes com traduções da norte-americana May Swenson, pouco ou nada conhecida no Brasil, e “Outros Russos” —”do arrebatamento e da sátira de Maiakovski ao menosprezo disruptivo de Iessiênin e aos presságios juvenis de Tzvietáieva, alguns momentos da Geração que Dissipou seus Poetas”.

Como lenitivo à perda, o poeta sola em casa com uma gaita diatônica, a mais recomendável para as sessões de blues com seu filho, o músico Cid Campos. Ele chegou a usar uma gaita cromática quando gravou as versões “Amor em vão” (Love in Vain, 1937), de Robert Johnson, e “Visitante dos Céus” (Up From The Skies, 1967), de Jimi Hendrix.

A voz limpa de Augusto foi comparada por Waly Salomão ao timbre do sambista Paulinho da Viola. Nenhum exagero nisso, se o ouvirmos cantar “Chegou a Noite”, um samba de Eurico de Campos, seu pai, que o ensinou a amar a música popular “e a passar toda a minha vida/ a defender causa perdida”, segundo a dedicatória de “Balanço da Bossa” (1968).

“Não passo de um gaitista amador. Deram-me uma gaita quando adolescente e gostei do instrumento que segui tocando razoavelmente, com uma parada drástica por algumas décadas, quando tive um problema com o nervo trigêmeo da face. Não tenho pretensões. É só uma distração”, explica.

Se deixou de intervir com textos críticos na música popular, não interrompeu a escuta de discos e o diálogo com Caetano Veloso, Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. Nem deixou de externar novos encantos.

“Sim, Tim Maia… Gosto de sua voz e de suas intervenções disruptivas, que descobri tardiamente. Adorei a biografia de Nelson Motta que o Cid me emprestou. Ouço sempre Caetano com muito entusiasmo. Sou fã de Adriana Calcanhotto, generosa amiga e parceira com Cid Campos via Pedro Kilkerry, Emily Dickinson, Arnaut Daniel… Não acompanho como crítico a música popular, e meus novos gostos e desgostos serão certamente discutíveis. Mas recentemente gostei muito de ouvir a voz de Xênia França acompanhada pelo incrível pianista Amaro Freitas.”

Augusto identifica a transferência do interesse pela poesia de livros e revistas para a canção popular em parte pelo talento incomum de poetas-músicos como Caetano, Gilberto Gil e Chico Buarque. O Nobel de Literatura para Bob Dylan, em 2016, confirmou essa tendência. Houve, em paralelo, o encolhimento do debate poético nos jornais e a mudança do vínculo dos criadores com as técnicas de versificação e o repertório de gerações precedentes.

“Hoje, com raras exceções, a poesia que se faz não tem melos, não tem melodia. As pessoas não têm ouvido. A poesia engrena numa espécie de prosa recortada. Essa prosa recortada atende bem à ideia da logopeia, mas ela perde a melopeia. E a gente pode lembrar que o Pound dizia que ela se afasta da música quando vai deixando de ser poesia, vai virando prosa”, avalia.

“A melodia é básica, fundamental. Não só a visualidade. A poesia é uma forma de melodia, e isso explica, de certa forma, o grande sucesso dos poetas da música popular, principalmente, em nossa área ou nossa bolha, os grandes intérpretes, muitos deles sofisticadíssimos, como é o caso do Caetano. Na nossa bolha são uma maravilha, são os mais fantásticos poetas, mas, na verdade, a música sertaneja ganha longe. Estatisticamente, as dez músicas mais ouvidas nas plataformas são sertanejas.”

Nos últimos meses, Augusto vem repetindo que o lançamento do último livro o deixa “quite com a vida”, mas nada sugere o fim das inquietações intelectuais. Na parede de sua sala, um quadro com fontes fluorescentes se revela ao apagar da lâmpada:

“Poe

Sia

Con

Tra

Luz

Ler

Sem

Ver”

Foi levado à contracapa de “Pós Poemas”.



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