João Camarero sabe explorar as facetas de Baden Powell – 25/03/2025 – Ilustrada


Parceiro frequente e amigo de Baden Powell, Paulo César Pinheiro já disse que o violonista tinha dois modos bem marcados de compor: um para canções, quando fazia melodias para ganharem letras e serem cantadas; e outro para temas instrumentais, que seriam executados por seu violão, em voo livre do canto e da palavra. É possível se reconhecer as duas linguagens em meio às cinco faixas de “Baden”, EP de violão solo no qual João Camarero homenageia o mestre.

“Voltei”, com letra do próprio Pinheiro, “O Astronauta” e “Velho Amigo”, ambas com versos de Vinicius de Moraes, vêm da safra das canções. “Chará” tem natureza instrumental. E “Poema dos Olhos da Amada (Introdução)” soa como um híbrido, indo de um idioma a outro.

Mas não é de uma cisão que se trata aqui, e sim de amplidão. O Baden que se condensa nos breves 15 minutos do EP e nas seis cordas de Camarero é vasto. E se apresenta íntegro, uno —o contrário de dividido. O jovem violonista trafega com naturalidade pelas facetas do homenageado, traçando um panorama: do autor de canções ao compositor de obras violonísticas; do chorão buliçoso ao romântico lírico; do delicado ao explosivo. No caminho, afirma as personalidades artísticas grandiosas de seu mestre e a sua própria, discípulo.

É como discípulo que Camarero abre o EP, com “Voltei”. Em sua interpretação, o violonista evoca o Baden vigoroso dos “afro-sambas”, de golpes firmes tanto nas regiões graves como nas agudas, sem abrir mão da técnica que desenha a melodia à perfeição. E ele se permite acenar ao mestre com a segurança de quem, aos 34 anos, tem uma personalidade firmada como solista e como instrumentista acompanhante de artistas como Maria Bethânia.

Baden nunca gravou “Voltei” no formato de violão solo —nos registros oficiais, como no programa “Ensaio” de 1990, ano em que Camarero nasceu, ele aparece cantando a letra de Pinheiro. Dessa forma, a escolha de Camarero pela composição, assim como por sua interpretação, ganha ainda mais brilho.

De um lado, pela oportunidade de ouvirmos um dos grandes violonistas de sua geração desbravando um terreno inexplorado. E, de outro, pela chance de fantasiarmos, pelas mãos do músico, as mãos do autor ali, onde nunca estiveram.

Duas faixas remetem a uma memória fundante de Camarero, quando ouviu pela primeira vez, na casa de um tio, o álbum “Solitude on Guitar”, gravado por Baden em 1971 na Alemanha. Uma faixa em especial o arrebatou, “Introdução ao poema dos olhos da amada”, que ele compôs, como explica o título, para anteceder “Poema dos olhos da amada”, poema de Vinicius musicado por Paulo Soledade.

Na faixa, Camarero usa seus recursos ao violão para dar ainda mais expressividade à melodia que, como refletem os versos da canção a que se refere, carrega em si uma declaração de amor derramada e triste.

Entre a vibração afirmativa de “Voltei” e o drama de “Poema dos olhos da amada (Introdução)”, Camarero visita outra música do álbum “Solitude on guitar”. O delicioso choro “Chará” é lido por ele com malícia rítmica e, novamente, com uma exploração de timbres que se equilibra na medida exata, sem ceder ao exibicionismo vão.

A faixa seguinte, “O Astronauta”, foi lançada na voz de seu letrista Vinicius em 1963, em disco clássico que o poeta gravou com Odete Lara pela gravadora Elenco. A interpretação de Camarero começa lenta e depois acelera, como Baden costumava fazer. Mas seus caminhos são próprios, sobretudo nas variações da segunda metade da gravação.

O EP se encerra com “Velho Amigo” —valsa pungente que Baden compôs após a morte de seu pai e para a qual Vinicius escreveu versos plenos de saudade sentida numa noite de Natal. O violão de Camarero se espalha em notas longas, carregadas de nostalgia.

O artista desenvolve a melodia com solenidade e sentimento, o que já seria beleza suficiente. Mas ainda há um acorde final, surpreendente, que carrega de mais sentidos o que se ouviu antes —nos últimos 15 minutos, na obra de Baden. Detalhe que revela a natureza de grande intérprete.



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