Identidade é peso leve em lutas civis – 29/03/2025 – Muniz Sodré


O identitarismo é ponto central no feroz ataque de Trump aos deslocamentos simbólicos em curso nos EUA e no mundo. Curioso é que o energúmeno advoga identidade nacional fechada para o seu país, ao mesmo tempo que investe contra outras reivindicações nessa linha argumentativa.

Na gangorra entre publicidade (Steve Bannon) e performance destrutiva (Elon Musk), ele apregoa uma verdade única para a América. Mas não há nada de verdadeiro numa identidade com o rótulo de América, que sempre equivaleu a poder mercantil, financeiro e tecnológico, também como força letal ou dissuasiva.

Disso sempre fez alarde a América, desde a Segunda Guerra, como paradigma para o resto do mundo. País de imigração contínua, sem hastear bandeira de identidade nacional excludente.

A questão identitária emerge nos anos 1970, com caráter contra-hegemônico, numa corrente de estudos (“Teoria Racial Crítica”) empenhada em desmontar mecanismos institucionais que relegam os negros à subalternidade. Embora invisível, já existia um identitarismo branco diferente, porque racista, negador da humanidade do outro.

Mas toda identidade é ilusória, embora protetiva quanto às oscilações da consciência. Serve para controle nos documentos de Estado, sem implicar nenhuma essência biológica. No movimento antirracista, é só um construto validado por uma comunidade política. Em termos humanos, não existe identidade negra, nem branca, ou qualquer outro essencialismo racial.

Os EUA atravessam uma conjuntura histórica de alterações significativas na composição demográfica, com crescimento extraordinário da porcentagem de cidadãos de cor da pele diversa. Identitarismo, inflexão crítica para designar com potência renovada o antirracismo, passou a abranger questões de gênero em suas modulações. Ao se ampliar, porém, esticou ao limite a sua validação político-comunitária, enfraquecendo-se. Basta ver os imigrantes latinos nos EUA: não alegam identidade nenhuma, querem apenas inserção nacional. Seu horizonte é o do “mestre protetor” (como Marx percebeu nos camponeses franceses abatidos e humilhados), o mesmo fenômeno do oprimido seduzido pelo opressor. Uma lógica não solidarista do tipo “isso é problema dos novos, não dos antigos”.

A questão deixa implícito o campo afetivo, decisivo para a compreensão dos relacionamentos intersubjetivos por parte dos que participam ou apenas orbitam em torno das movimentações civis. Assim, emoções intensas podem instilar em afrodescendentes a fantasia de uma identidade racial essencialista em reação à outra, fabricada pelo paradigma colonialista da branquitude. Mas ambas são manufaturas biopolíticas reificadas. Seria um atraso cognitivo e existencial levá-las a sério e arguir um exclusivo lugar de fala.

Entre nós, tem pesado a confusão entre identitarismo e identidade. São coisas diferentes, apesar da derivação vocabular. O conceito de identidade apenas sobrevoa o identitarismo, por sua vez um biombo semiótico para minorias. Não tem verdade acadêmica, mas é motor de ação política, jamais pretexto para ataques nem expressões de ressentimento racial.


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