Trump é um problema para a OMC, mas não o único nem o maior, diz pesquisador – 01/04/2025 – Mercado


A casa de máquinas da OMC (Organização Mundial do Comércio) ainda funciona e Donald Trump não é a única pedra a ameaçar as engrenagens da entidade. O diagnóstico é de Axel Berger, vice-diretor do Instituto Alemão de Desenvolvimento e Sustentabilidade, um dos principais think tanks do mundo dedicados ao tema.

Especialista em multilateralismo e pesquisador de acordos internacionais de comércio, Berger afirma à Folha, em entrevista por vídeo de Bonn, que a OMC poderia funcionar melhor se alguns atores importantes, como África do Sul e Índia, não impedissem de forma sistemática avanços em negociações. “Trump é apenas parte do problema. Há membros da OMC que estão regularmente bloqueando decisões da entidade”, afirma.

Berger lembra que Trump também causou alarde no comércio internacional em seu primeiro mandato, mas vê como novidade agora as tarifas recíprocas, que ferem uma regra fundamental da organização, fundada em 1995 e, desde sempre, em crise ou bombardeada por pedidos de reforma. “Há um valor real no sistema, seríamos muito mais pobres sem uma OMC.”

Ngozi Okonjo-Iweala, diretora da OMC, afirmou logo após a posse de Donald Trump que a organização é vital para o comércio global. Ao mesmo tempo, há um discurso político recorrente, refletido na imprensa, de que a OMC não funciona. Ela funciona?

A OMC funciona, mas não como deveria. Há grandes preocupações em relação à organização e a seus processos. Há um sistema de solução de controvérsias que não funciona corretamente, já que a segunda instância, o sistema de apelação, está prejudicado porque os EUA bloquearam a nomeação de novos juízes. Outra preocupação é a OMC e seus membros acharem muito difícil concordar com novas regras multilaterais. Há o argumento de que as regras estão desatualizadas, de que há novos desafios como sustentabilidade, clima e digitalização não contemplados. Mas a casa de máquinas ainda funciona, os comitês estão trabalhando, locais de encontro para refletir sobre a formulação de políticas comerciais. A OMC contribui para o monitoramento de políticas comerciais, coleta dados, fornece análises. E também vimos a conclusão de acordos comerciais multilaterais, como o de Facilitação do Comércio e o da Pesca. Recentemente, houve progresso nos chamados acordos plurilaterais —coalizões ou subgrupos de países que concordam em um tópico específico para avançar um pouco mais rápido. Há, por exemplo, um acordo muito técnico sobre regulamentos domésticos de serviços. A OMC não está morta, mas poderia funcionar melhor.

Isso não começou com Trump, o bloqueio de juízes vem desde a administração Obama. A questão são os EUA?

A preocupação dos EUA remonta à criação da OMC. Está centrada, em primeiro lugar, no sistema de solução de controvérsias e, em particular, no sistema de apelação, onde os EUA, para simplificar, temem que a OMC interfira nos processos judiciais ou de formulação de políticas domésticas americanas. Obviamente, também se preocupam com a definição de países em desenvolvimento, a questão da China ainda ser considerada assim e ter certos benefícios. Trump poderia acirrar essas discussões. Ele gosta de tarifas. Como no primeiro mandato, tarifas bilaterais, contra este ou aquele país ou setor. Isso seria um desafio para os parceiros afetados, mas não ameaça o sistema como um todo. Agora ele vem com esta proposta de tarifas recíprocas, que viola um dos princípios essenciais da OMC: o MFN, princípio das nações mais favorecidas, que diz que você tem que tratar todos os parceiros igualmente. Se você aumentar ou diminuir uma tarifa com um parceiro, você tem que fornecer esse benefício também para os outros.

Porém Trump é apenas parte do problema. Há membros da OMC que estão regularmente bloqueando decisões da entidade. Dois países, África do Sul e Índia, são contra membros avançando em coalizões em áreas particulares como, por exemplo, comércio eletrônico ou investimento. O mesmo em relação à pesca, onde a Índia bloqueia um acordo que deveria prevenir o uso excessivo de subsídios, importante para a saúde dos oceanos. Trump é um problema, mas há também outros membros que estão bloqueando o progresso na OMC e, assim, enfraquecendo a organização como um todo.

Quais seriam as motivações de África do Sul e Índia?

Nos acordos plurilaterais, um subgrupo de membros pode negociar e avançar em tratados. Aconteceu há pouco, por exemplo, com coinvestimentos. O acordo é negociado por mais de 120 membros da OMC, muitos deles países em desenvolvimento. E a principal razão pela qual a Índia e África do Sul estão bloqueando esse tratado não tem a ver com facilitação de investimento. Se eles permitissem que os membros avançassem em acordos plurilaterais sem que todos os membros estivessem envolvidos, eles perderiam seu poder de veto. Porque, no final, esses acordos plurilaterais têm que ser incluídos ou integrados no sistema da OMC por consenso. Os EUA até agora não tiveram problema com isso, mas Índia e África do Sul se opõem basicamente porque não querem perder esse poder de dizer não.

Em um artigo no mês passado, o sr. escreveu que os EUA tinham “instrumentos de tortura” para lidar com a OMC. O primeiro seria cortar o financiamento. Isso agora já estaria ocorrendo.

Acho que faz sentido comparar uma eventual saída da OMC com as já definidas pelos EUA, como as do Acordo de Paris ou da OMS (Organização Mundial da Saúde). A contribuição dos EUA para o orçamento da OMC é algo em torno de US$ 20 milhões. Outros membros poderiam facilmente cobrir essa lacuna. É uma situação muito diferente da OMS, onde a contribuição americana é muito maior e sua ausência criará problemas reais, como falta de vacinação etc. Também poderíamos pensar que os EUA podem ativamente sabotar os processos de trabalho na OMC, mas não vejo isso no momento. Porque, embora uma retirada seja possível, os EUA perderiam ou destruiriam uma rede de acordos bilaterais com todos os outros membros da OMC, em que concordaram com tarifas, regras etc; e a proteção de investimento de direitos de propriedade intelectual, fundamental para o país. Seria um passo muito largo para a Casa Branca, mas em particular para o Congresso e o setor empresarial americano. Talvez seja só um cenário de pesadelo.

A OMC parece estar em um estado permanente de reforma. No último fim de semana, reunião entre China, Coreia do Sul e Japão sobre uma aliança regional pediu também mudanças na entidade. Qual seria a reforma ideal?

A resolução de disputas e, sendo otimista, um novo terreno de treinamento multilateral. Nenhuma dessas opções é possível. Mas em um ou dois níveis abaixo, posso ver várias áreas onde os membros da OMC poderiam melhorar o funcionamento do sistema. Os plurilaterais, as coalizões, estas são áreas importantes para atualizar o sistema da OMC. Na digitalização, comércio eletrônico, sustentabilidade, facilitação de investimento etc. A grande maioria dos membros estaria disposta a avançar nessas áreas. E são basicamente dois países que estão atualmente bloqueando esse avanço, não os EUA. Precisamos de membros que realmente vejam um valor na OMC, no sistema multilateral. É interessante que você tenha mencionado China, Coreia do Sul e Japão. Três países que têm uma história muito difícil juntos, rivais geopolíticos, mas que ainda estão tentando cooperar em questões de política comercial. A mesma lógica deveria entrar em vigor em relação aos debates de política comercial na África do Sul e na Índia e outros membros que são críticos. Precisaríamos de algum progresso talvez no contexto do G20 sob a presidência da África do Sul neste ano.

Essa resistência de África do Sul e Índia não parece ter suporte nos Brics. O governo brasileiro é bastante vocal sobre multilateralismo.

Não acompanho a discussão do Brics tão de perto como as do G20. Mas, se você olhar para os atores em ambos os fóruns e também no G7, há países que estão dispostos e outros abertamente bloqueando o progresso nas reformas multilaterais. Eu argumentaria que o Brics não é diferente do G20 e do G7 quando se trata de comércio.

Há esse passo inicial de acordo entre China, Japão e Coreia do Sul. Em 2024 ocorreu o tratado entre União Europeia e Mercosul, ainda que com resistências nos dois continentes. O Canadá, acossado por Trump, já procura parcerias, assim como a União Europeia. A ofensiva de Trump pode ter efeitos colaterais?

Este seria um cenário positivo. Já vimos um pouco disso durante a primeira presidência de Trump. Países tentando acelerar negociações bilaterais e regionais e usando, por exemplo, o G20 como plataforma. UE e Índia também estão fazendo progressos, após 20 anos ou mais de negociações. Ao mesmo tempo, o que não estou vendo é o mesmo impulso no nível multilateral.

A diretora da OMC disse em uma entrevista ao Financial Times que a globalização não está morta, apenas desacelerando. O senhor concorda?

A globalização não está morta, mas está mudando, e isso é certo. Padrões de comércio e cadeias de valor, mas também políticas comerciais. De uma perspectiva europeia, há esse impulso para sistemas mais diversificados, “de risking” da China, por exemplo. Aprendemos com a pandemia também, quando vimos várias cadeias de valor realmente fracas. É preciso ter mais resiliência no sistema. Os países também devem estar cientes de que as rotas comerciais estão mais vulneráveis agora no Indo-Pacífico, no chifre da África e no canal de Suez por diferentes razões: políticas, de segurança e também relacionadas à crise climática. Devemos realmente confiar em países que não compartilham nossos valores em termos de democracia e abertura ao comércio? Então todos esses elementos se juntam e levarão a uma reconfiguração dos fluxos comerciais. Em alguns casos, pode levar a uma maior regionalização dos padrões de comércio. Estou observando com grande interesse a discussão na África sobre uma área de livre comércio continental africana. Mas ainda precisa ser realmente implementado para realmente fomentar cadeias de valor e fluxos comerciais intra-africanos. O sistema está em reconfiguração.

O multilateralismo então sobreviverá a Trump?

Responderia também de forma provocativa. A OMC tem uma boa chance de sobreviver a Trump, mas apenas se outros membros também estiverem dispostos a cooperar com o sistema, em particular alguns atores do chamado Sul Global. Não devemos nos concentrar apenas nos EUA, isso seria perigoso. Há um valor real no sistema, seríamos muito mais pobres sem uma OMC. É preciso realmente avançar em relação ao sistema multilateral.

E o mundo sobreviverá ao 2 de abril?

Espero que sim [risos]. A um custo alto, com certeza.

RAIO-X | Axel Berger

Vice-diretor do Instituto Alemão de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IDOS), é doutor em ciência política, economia e história moderna pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique; pesquisa o design e os efeitos de acordos internacionais de comércio e investimento, com foco na reforma da Organização Mundial do Comércio (OMS)



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