Reforma do Código Civil propõe mudanças amplas no direito de família

Tramita no Senado Federal uma proposta que pode provocar uma das maiores atualizações do Código Civil brasileiro desde sua promulgação, há mais de duas décadas. Apresentado pelo então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o projeto pretende reformular mais de mil artigos e adequar a legislação às transformações sociais, tecnológicas e familiares que ocorreram nos últimos anos.

O texto foi elaborado com base no relatório final aprovado por uma comissão de juristas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em abril de 2024 e ainda será discutido pelos parlamentares antes de se tornar lei.

Entre os principais pontos está a ampliação do conceito de família, reconhecendo vínculos socioafetivos e a multiparentalidade — ou seja, a possibilidade de uma criança ter mais de um pai ou mãe em seu registro, mesmo sem vínculo biológico.

O projeto também prevê que, em caso de recusa ao exame de DNA, o registro de paternidade possa ser feito com base apenas na declaração da mãe. Outra inovação significativa é a cláusula “sunset” nos pactos antenupciais. Casais poderão estabelecer, por exemplo, que durante os primeiros anos de casamento valerá o regime de separação de bens, migrando depois para o de comunhão universal.

Além disso, a proposta permite que cidadãos elaborem uma espécie de testamento antecipado para o caso de perda de lucidez, nomeando um curador de confiança e definindo como sua gestão pessoal e financeira deve ocorrer.

Para o advogado Tiago Braga, especialista em direito de família e sucessões, a ampliação do conceito de família acompanha mudanças sociais importantes, mas pode trazer desafios na esfera patrimonial.

“A multiparentalidade pode ampliar o número de herdeiros necessários e alimentaristas, tornando mais complexa a partilha de bens e a definição de obrigações financeiras entre os envolvidos”, explica.

E a pensão para a sogra?

Uma mudança que tem causado polêmica é a que estabelece que, após o fim de um casamento ou união estável, os ex-cônjuges sigam responsáveis pelo convívio e despesas de filhos e dependentes.

O termo “dependentes” é o ponto de tensão. Segundo especialistas, isso pode incluir pessoas como sogras idosas, irmãos ou enteados que passaram a depender economicamente do casal durante a relação.

Braga alerta que essa ampliação pode gerar insegurança jurídica e sobrecarregar o devedor de alimentos. “Não faz sentido romper o vínculo da sociedade conjugal e continuar pagando a obrigação alimentar para dependentes que não são parentes da mesma linha sucessória do devedor”, afirma. Para ele, essa questão deveria ser resolvida no âmbito previdenciário e não por meio de mudanças no Código Civil.

Além disso, ele aponta riscos jurídicos na proposta: “Essa proposta pode ampliar de forma imprecisa o rol de obrigados, gerando insegurança jurídica por falta de critérios objetivos e pelo risco de judicialização excessiva, ferindo o princípio da solidariedade familiar na medida certa.”

Casamento, divórcio e herança

A proposta reconhece uniões homoafetivas no Código Civil e passa a permitir o divórcio ou dissolução de união estável de forma unilateral. Também será possível mudar o regime de bens diretamente em cartório, sem necessidade de processo judicial.

Sobre o reconhecimento das uniões homoafetivas, Braga avalia que a formalização dessa mudança é positiva. “A formalização consolida direitos já reconhecidos pelo STF e garante segurança jurídica a casais homoafetivos, inclusive em questões como adoção, herança e pensão por morte”, pontua.

No campo sucessório, uma mudança importante é que os cônjuges deixarão de ser herdeiros diretos se houver descendentes (filhos, netos) ou ascendentes (pais). E as doações feitas a amantes durante um relacionamento formal poderão ser anuladas até dois anos após o fim da união.

O advogado vê com preocupação o impacto de relações extraconjugais sobre direitos patrimoniais. “Relações extraconjugais (concubinato impuro) não geram efeitos patrimoniais nem previdenciários, salvo se houver comprovação de relação estável e exclusiva. O STJ tem rechaçado a possibilidade de divisão de bens ou pensão em casos de relações paralelas a um casamento ou união estável.”

Dívidas, empresas e patrimônio digital

No campo das dívidas, o projeto proíbe a penhora do imóvel do devedor se este for o único bem da família. Se for um imóvel de alto padrão, a penhora pode atingir até 50% do valor do bem. A cobrança de juros por inadimplência também será limitada a 2% ao mês.

Para as empresas, a proposta reforça o princípio da liberdade contratual entre partes com condições equivalentes e obriga empresas estrangeiras a terem sede no Brasil para atuar regularmente no país.

Já no ambiente virtual, o texto cria um marco de direito digital, reconhecendo o patrimônio digital como bem transmissível em herança e regulamentando o uso de assinaturas eletrônicas. Também será exigida autorização para a criação de imagens por inteligência artificial, tanto de pessoas vivas quanto falecidas.

Proteção jurídica a animais

O projeto prevê ainda que os animais deixem de ser tratados como objetos e passem a ter proteção jurídica própria, com direito a indenização por maus-tratos. Os detalhes sobre como essa proteção funcionará deverão ser definidos em legislação posterior.

O que vem agora?

Antes de entrar em vigor, a reforma do Código Civil ainda precisa ser discutida e aprovada pelo Congresso Nacional, o que pode levar meses — ou até anos. Segundo o Senado, o objetivo é que a proposta reflita as transformações sociais e econômicas do país, mantendo a segurança jurídica e ampliando direitos individuais.

Braga ressalta que, embora algumas mudanças sejam bem-vindas, outras podem trazer desafios jurídicos relevantes. “O reconhecimento da multiparentalidade é um avanço importante por refletir a realidade de muitas famílias e garantir proteção jurídica a vínculos afetivos reais. Já a proposta de ampliar a obrigação de alimentos para sogras e terceiros pode trazer desafios jurídicos relevantes, por sua imprecisão conceitual, risco de judicialização excessiva e insegurança quanto aos critérios para fixação da obrigação”, finaliza.

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