[RESUMO] O desfile realizado em 1952 na primeira sede do Masp, no centro de São Paulo, representou uma tentativa ousada do casal Lina Bo Bardi e Pietro Bardi de fomentar uma moda brasileira que se afastasse do modelo hegemônico da alta-costura europeia e expressasse a complexa cultura do país. A experiência confluiu com o esforço de criação de um museu que ultrapassasse a ideia de mausoléu empoeirado e o isolamento das diversas expressões artísticas.
A moda é um segmento recente no Brasil: pode-se dizer que começou em meados do século 20, enquanto na França, por exemplo, é assunto de Estado desde o reinado de Luís 14 (1643-1715).
Aqui, entre as iniciativas recentes que tiveram o objetivo de fortalecer e profissionalizar o setor, podemos mencionar Grupo Moda Rio, Núcleo Paulista de Moda, Fashion Rio, Phytoervas e São Paulo Fashion Week, o único que continua ativo e comemora 30 anos apresentando desfiles de marcas nacionais —a edição 2025 começa neste domingo (6).
A experiência pioneira mais radical provavelmente foi a do casal Lina Bo Bardi (1914-1992) e Pietro Maria Bardi (1900-1999), que organizou, em 1952, o chamado “Primeiro Desfile de Moda Brasileira” no Masp (Museu de Arte de São Paulo) —que, aliás, acaba de expandir seu espaço museológico e iniciar uma nova fase com a inauguração de um novo edifício.
O “Primeiro Desfile de Moda Brasileira” aconteceu em meio às obras da pinacoteca da primeira sede do museu, na rua Sete de Abril, no centro de São Paulo, e apresentou cerca de 50 looks, batizados com nomes que não deixam dúvida sobre a intenção dos organizadores: despertar a elite local para a valorização de uma estética calcada em materiais e tradições brasileiras, mais adequadas ao clima e ao estilo de vida tropical.
Para viabilizar a parte comercial, Bardi criou uma parceria com a loja de departamentos Casa Anglo-Brasileira, o Mappin.
Seguindo o padrão dos desfiles de alta-costura de Paris, um narrador anunciava a entrada de cada look: “Macumba”, “Favela”, “Balaio”, “Bala de Coco”, “Cunhambebe”, “Cuíca”, “Papagaios”, “Cachoeira”, “Cascavel”, “Abacate”, “Carambola”, “Escola de Samba”, “Ouro Preto”, “Mãe de Santo”, “Jangada”, “Perequê” etc. Os títulos davam protagonismo a temas ligados a indígenas, afrodescendentes, lugares turísticos e frutas tropicais —na contracorrente do modelo dominante que enaltecia o padrão francês de luxo.
Poucos anos antes, os Bardi haviam se casado, emigrado da Itália e se estabelecido em São Paulo: ele como fundador e diretor do Masp, criado pelo magnata da imprensa Assis Chateaubriand em 1947.
Na Itália, Pietro trabalhava como jornalista e chegou a dirigir uma galeria de arte em Roma a convite de Benito Mussolini, fundador do Partido Nacional Fascista que se tornou ditador em 1922.
A estratégia nacionalista de Mussolini concebia a construção de uma moda italiana autêntica, que tivesse qualidade e autonomia em relação aos ditames da França, berço da moda contemporânea. O regime fascista da Itália implementou medidas como o incentivo à indústria têxtil e a exposições e semanas de moda e até o lançamento de um dicionário para familiarizar os italianos com o léxico da moda.
Bardi também foi influenciado pelos princípios iniciais da Bauhaus. Criada por Walter Gropius na cidade de Weimar, na Alemanha, a escola buscava romper —ou, ao menos, borrar— os limites entre a arte e o artesanato, o design e a moda com o intuito de promover uma transformação social e criar “um novo ser humano”.
No “Manifesto da Bauhaus”, de 1919, Gropius defendia que os artistas retornassem ao artesanato, já que acreditava que não havia “nenhuma diferença essencial entre o artista e o artesão”. “O artista é uma elevação do artesão.” Também propunha a criação de uma cooperativa de artesãos, sem a presunção e a arrogância elitista de criar “um muro de orgulho entre artesãos e artistas”.
Por outro lado, a Bauhaus tinha uma postura bastante sexista: as mulheres que se matriculavam na escola eram encaminhadas automaticamente para as aulas de têxteis (costura, bordado, tecelagem), considerada uma “arte menor”.
Adepto desses preceitos, Bardi perseguiu a ideia de criação de um “museu fora dos limites”, título de um artigo de sua autoria publicado na revista Habitat em 1951. Segundo o texto, os museus eram, “na melhor das hipóteses, um banho de antiguidade e coisas mortas […] e contribuíram muito para separar as artes umas das outras”. O Masp viria para ensinar “as pessoas a amar, compreender e estudar a arte, todas as artes que incorporam os pensamentos mais elevados do homem”.
Bardi segue: “Nossa preocupação é criar uma unidade entre as artes porque a distinção, ou melhor, o violento divórcio que se estabeleceu atualmente entre as artes, deixando cada uma delas isolada e fechadas em si mesmas, como se estivessem num compartimento hermético, é um desvio grave”.
Era preciso, portanto, criar um contramuseu, um museu fora dos limites, um museu para todos, que atraísse tanta gente quanto os cinemas na época. Meses depois, a mesma Habitat declararia o Masp uma “instituição que considera o campo da moda um campo verdadeiramente artístico”.
A Habitat foi fundada por Lina e Pietro e, embora independente, atuava como órgão oficial das atividades do Masp.
Na primeira edição, Lina assina o artigo “Função social dos museus”, defendendo a dessacralização deles, “um mausoléu intelectual” empoeirado, e a integração de vários tipos de arte, bem ao estilo da Bauhaus. A segunda edição da revista declara que o Masp “procura por todos os meios se afastar do campo da museografia tradicional, a fim de abreviar sempre mais a distância entre o museu-templo e a vida”, argumento posto em defesa da realização de um desfile na primeira sede do museu.
Essa primeira iniciativa, intitulada “Desfile de Trajes Antigos e Modernos”, buscava criar uma cronologia da evolução da moda destacando modelos de alta-costura de Christian Dior, que estava no auge da sua carreira, e o famoso “Traje para o Ano 2045”, criado por Salvador Dalí e pertencente à coleção do Masp até hoje.
Ao fazer uma pesquisa para o curso “Moda no Masp: em busca de uma identidade brasileira”, no próprio museu, tive a impressão de que o “Desfile de Trajes Antigos e Modernos” soou como um alerta vermelho nas mentes modernistas no comando do Masp. O desfile representava os valores da burguesia europeia, uma imagem empoeirada que seguia à risca a moda criada e ditada em Paris.
Imagino como isso repercutiu nas intenções museológicas de Bardi e despertou várias questões. Como aqueles modelos importados dialogavam com o clima tropical, o tipo físico, os costumes, as tradições e a realidade tão diversa do Brasil?
Os fatos que se seguiram convergem para essa hipótese. Os Bardi criaram, no Masp, o IAC (Instituto de Arte Contemporânea), uma escola que, entre vários cursos, ministrou aulas de costura, modelagem, maquiagem e formação de modelos profissionais —a atriz Odete Lara foi descoberta nesse desfile.
O objetivo era capacitar profissionais para realizar, em 1952, o “Primeiro Desfile de Moda Brasileira”, definido como “uma tentativa ousada” diante da referência dominante da moda de Paris e mesmo da Itália: “O Brasil […] deve — como o temos feito — criar sua moda individual”. “Uma moda, enfim, correspondente à complexa estrutura cultural brasileira, formada por camadas substancialmente diversas entre si, mas que tendem e concorrem todas à formação de um aspecto único, que é justamente o nosso país.”
Na década de 1950, o conceito do prêt-à-porter (pronto para usar) ainda não havia surgido. A elite ocidental, tanto do Sul quando do Norte globais, se vestia com modelos de alta-costura ou reproduções desses modelos confeccionados por magazines e maisons, espécies de butiques de luxo que atendiam sob medida. A profissão de estilista não existia, e a profissão de costureiro, associado ao luxo, estava começando a surgir no Brasil.
Aqui, as referências eram Casa Canadá, Madame Rosita, Madame Boriska —comandadas por mulheres imigrantes— e Casa Vogue. Bardi, no entanto, não procurou nenhuma delas para criar o desfile de moda brasileira. Preferiu formar uma equipe dentro do próprio museu, com o casal Luisa e Roberto Sambonet, imigrantes italianos como ele, como espécie de diretores criativos.
A artista têxtil Klara Hartoch, responsável pelas oficinas de tear manual e pela criação de vários modelos para o desfile, fazia parte dessa equipe. Fugindo do tradicional, Hartoch experimentava misturando materiais como lã e camurça, lã e palha e até plástico.
Roberto Sambonet ensinava pintura e desenho à mão livre e desenhou os cerca de 50 croquis que deram origem aos modelos da “moda brasileira” desfilados em 6 de novembro de 1952 na pinacoteca do Masp.
Não são nítidas as funções específicas de Luisa Sambonet, mas tudo indica que coube a ela a coordenação geral do evento. Segundo a pesquisadora Ethel Leon, Luisa Sambonet teria ministrado o curso de estamparia e, acredito, também as aulas para manequins (as modelos da época), curso fundamental para a realização do evento. Foi provavelmente a primeira vez que uma modelo negra, Gloria, desfilou.
Carybé, artista argentino radicado na Bahia, contribuiu trazendo personagens do candomblé, como a sereia do mar para o modelo “Macumba”, pintado à mão pelos alunos do IAC.
O paisagista e artista plástico paulista Roberto Burle Marx criou as estampas “Papagaios” (referente à pipa, não à ave), “Foguete” e de inspiração marajoara. Roberto Sambonet trabalhou com grafismos nos modelos “Perequê”, “Carambola”, “Carajuru” e “Faísca” e fez a única estampa de flor do desfile, “Anturium”, aceita por ser uma flor tropical. Lina fez joias, e Hartoch trouxe sua expertise na construção inovadora de vários tecidos feitos em tear em modelos como “Favela”, “Balaio”, “Iguassu” ou “Bala de Coco”.
A Habitat declarou sem modéstia que o desfile havia ultrapassado as expectativas: “A moda brasileira passava a ser de mero sonho de alguns a uma realidade positiva. Nisto está talvez a mais bela iniciativa do Museu de Arte e sem dúvida a iniciativa que saiu melhor. E agora, imitadores de ideias: continuais!”. A Folha da Manhã publicou um texto elogioso sobre o evento, em uma página, com fotos, em 9 de novembro de 1952.
Como o próprio Pietro Bardi reconheceu anos mais tarde, no entanto, sua iniciativa não rendeu muitos frutos, frustrando sua intenção de —para usar um termo atual— decolonizar o mercado da moda.
Na verdade, talvez coubesse a ele um mea culpa, já que nem mesmo o arquivo do Masp guardou uma boa documentação desse desfile de extrema relevância para a moda brasileira. Nenhum dos 50 looks, por exemplo, entrou para a coleção do museu. Tampouco há registros fotográficos de todos os looks, amostras dos tecidos ou os croquis e os desenhos das estampas.