Na mais recente reunião de condomínio do prédio em que moro, num bairro de classe média de Buenos Aires, vizinhos discutiam como convencer a prefeitura a mudar de lugar uma lixeira que ficava diante da nossa porta principal.
O local sempre foi conveniente —bastava dar dois passos na rua e já se podiam despejar as sacolas dentro da lixeira. Nos últimos meses, porém, isso mudou, e moradores de muitos prédios da cidade também passaram a mostrar descontentamento ou até mesmo a empurrar as lixeiras por conta própria.
Por quê? No fim do dia, grupos de pessoas pobres com sacos, carrinhos de supermercado e pedaços de arame aparecem com a ideia de pescar comida do lixo, revirando os dejetos e deixando o entorno da lixeira com um cheiro nauseante. Já descrevi essa imagem em outros textos, mas ela é cada vez mais comum em toda a região metropolitana.
Essa é apenas uma forma de se dar conta de que os números de bom desempenho da economia argentina ainda não se refletem na percepção de muita gente. Outras: os preços “europeus” de um simples café numa “confitería” local, a redução de movimento nos restaurantes, a queda no turismo, famílias pedindo esmola e aposentados saindo às ruas para protestar.
É por isso que se deve ter cautela ao ler as cifras de pobreza recém-divulgadas pelo Indec (o IBGE argentino), que mostram uma queda na taxa de pobreza de 52,9% para 38,1% no segundo semestre de 2024.
São muitos os críticos do modo como essa cifra é medida. Segundo o levantamento historicamente mais sério sobre a pobreza na Argentina —o do Observatório da Dívida Social da UCA (Universidade Católica da Argentina)—, a cifra caiu, sim, mas menos (41%).
O Indec concentra sua pesquisa nos 31 maiores centros urbanos, com 29,8 milhões de pessoas, enquanto a população total da Argentina supera 47 milhões. Essa abordagem exclui áreas rurais e cidades menores, onde as condições de pobreza são severas.
Tome-se a região do Chaco, por exemplo, a mais pobre do país. Ali, segundo a mesma medição, 60,8% da população urbana de Gran Resistencia (a capital e arredores) vive abaixo da linha da pobreza. Essa zona entra no levantamento do Indec, mas cidades menores na mesma região, não. Vários bolsões de pobreza no interior —e mesmo perto das áreas metropolitanas— ficaram de fora.
A metodologia baseia-se apenas na comparação entre a renda declarada das famílias e o custo de uma cesta básica de bens e serviços. Críticos apontam para a defasagem dos preços dos produtos que compõem essa cesta, pois a inflação —embora menor que a do ano passado— segue elevada. Economistas, inclusive liberais, afirmam que o peso está artificialmente valorizado.
Outra deficiência da medição é que ela exclui os gastos com moradia e transporte. É preciso lembrar que 40% da população não têm casa própria e que o corte de subsídios fez disparar os custos com a mobilidade.
Segundo relatório do Observatório da UCA, “seguiram aumentando a pobreza multidimensional, a insegurança alimentar, a impossibilidade de acessar medicamentos ou serviços de saúde, o não pagamento de dívidas e a impossibilidade de pagar ou reparar a moradia”.
Em vez de se concentrar em resolver esses problemas, a gestão Milei prefere usar esse número em sua campanha eleitoral para as eleições legislativas deste ano.
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