Pedi para um bot de IA escrever uma crônica no estilo Giovana Madalosso. Ainda bem que não publiquei: a estas horas já teria sido demitida deste jornal. “As horas se misturavam entre o aroma do pão quente de padaria e o canto dos pássaros”. Diga leitor: sou tão brega assim?
Prefiro pensar que o bot era incompetente. E era mesmo. Tentei outro app de IA. Já deu para ver que esse era mais inteligente porque foi logo massageando meu ego: “aqui vai uma crônica inspirada no estilo da Giovana Madalosso —afiada, com um tom que mistura sarcasmo, fragilidade e crítica social.”
Em seguida, lançou um texto bem razoável e uma caracterização de personagem que, se viesse de algum aluno das minhas oficinas literárias, eu elogiaria: “ele era o tipo de cara que lê um livro por ano e faz disso um evento.”
Mas o mais impressionante foi quando eu pedi que escrevesse um conto com o meu estilo. A IA pegou a garçonete do meu primeiro romance, a mãe do segundo e botou tudo em um personagem só. Observando uma cliente do restaurante, ela comenta: “carregava a bolsa no ombro como um tumor.”
Isso me deu um arrepio. Não só pelo humor negro, de gosto meio duvidoso, mas pela proximidade geral com o meu estilo. Tenho um vício que pensei que só eu e meu editor percebemos: uso muito a palavra “talvez”, que às vezes precisa ser cortada do meu texto feito erva daninha. E lá estava a IA, usando esse vocábulo na frase anterior e na seguinte.
Pensei que, nos sábados em que acordo de ressaca e sem inspiração para escrever, já tenho quem me ajude. “Bom dia, Bot, me vê uma aspirina e uma coluna de 3.200 caracteres sem a palavra talvez.”
Eu não deveria estar fazendo graça. Há coisas que essa crescente inteligência (ainda) não é capaz de fazer, como enredos bons e mais complexos. A IA peca pela previsibilidade. Se o pedido é crônica, apela para xícara de café e pássaros cantando de manhã, com um desfecho óbvio e epifânico, em tom de autoajuda.
Mas é só uma questão de tempo para que isso seja resolvido, à medida que a IA vai sendo alimentada com mais e mais crônicas, com mais e mais contos e romances, que já vêm sendo vendidos por alguns autores para o treinamento dessa ferramenta.
Ou usados sem autorização e pagamento, como alguns escritores acusam a Meta de ter feito com suas obras. Como vamos proteger nossos direitos autorais? Essa é uma história para outra coluna.
Por enquanto, nós, autores, nos equilibramos sobre a lâmina do potencial humano, empunhando nossos pequenos grandes trunfos. Um deles é não pensar de forma tão linear quanto a IA. Nós misturamos referências aleatórias. Seguimos a intuição. Temos lampejos. Voltamos atrás. Falhamos. E porque falhamos, chegamos em soluções inesperadas —quantas boas ideias não nasceram de acidentes de percurso?
Além disso, nós sentimos. E, porque sentimos, sabemos provocar sentimentos no outro. Perceba o que te faz gostar de um poema ou de uma música: as emoções despertadas. E parece que a IA ainda é um pouco gélida nesse sentido.
Por isso, por enquanto, e talvez só por enquanto, ela siga sendo a minha esporádica assistente. No dia em que ela editar esse “talvez” da linha acima e arrancar do leitor uma lágrima, deixarei minha escrivaninha e chorarei também.
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