Análise: Nova ordem emerge com a aproximação Trump-Putin – 19/03/2025 – Mundo


Um dos preceitos da geopolítica é que pessoas não moldam a história, mas a servem. Sob essa ótica, quando um personagem como Donald Trump surge, ele encarna o espírito do tempo.

Assim, por tentador que seja individualizar na conduta espalhafatosa do presidente americano a mudança da ordem mundial ora em curso, o que de resto serve a seu propósito político mais comezinho, é preciso contextualizá-la.

O sistema internacional como o conhecemos, montado após a Segunda Guerra Mundial, está caduco. Havia sido ferido de morte com o fim da União Soviética, que desmontou o arcabouço de segurança global centrado no conflito congelado na Europa.

A China ascendeu, potências menores clamam por lugar, a globalização passou de panaceia a vilã e a pandemia acabou por desarranjar tudo. Vladimir Putin, outro indivíduo que reflete a realidade geopolítica de seu país apesar de parecer controlá-la, então invadiu a Ucrânia em 2022.

Trump já estava fora do poder, e a reação conservadora dos EUA sob Joe Biden, liderando a defesa cautelosa de Kiev, esticou o conflito: nem Putin seria derrotado, nem Volodimir Zelenski seria imolado.

O arranjo era tão frágil que não durou dois meses da volta do republicano ao poder. Trump é a imagem do fastio da sociedade ocidental consigo mesma, para mais críticos o cinismo da era das redes sociais e do capitalismo tecnológico de Velho Oeste dos Elon Musk à sua volta, inclusive o próprio.

Para observadores mais moderados, longe da base de fãs do populismo, ele deriva de uma necessidade: a mudança das regras estabelecidas, que já não atendem à realidade.

Como seria óbvio, Trump pode não ter moral, mas tem lado, e isso delimita a linha entre seus críticos e apoiadores. Isso se vê em Israel, mas seu “bromance” com Putin é ainda mais dramático.

Por ora, o russo ganha tempo para elevar o seu cacife em qualquer negociação que venha a travar com Zelenski, e Trump se deixa enrolar por acreditar ser este o caminho para a acomodação.

Exemplo disso foi o telefonema entre Kremlin e Casa Branca na terça (18). Trump quer desafiar a noção de ser apenas um instrumento e emula seu antecessor Richard Nixon, quando o também republicano encontrou-se com o líder soviético Leonid Brejnev em Washington, em 1973.

Segundo as gravações de suas conversas, o americano e o russo concordaram que a relação pessoal entre eles era “a chave do futuro”. Brejnev chegou a se presenteado com uma limusine, da mesma forma com que o ditador Kim Jong-un ganhou uma de Putin.

Trump se fia no “rapport” com o colega. O entorno no Kremlin desconfia que ele apenas queira auferir louros políticos e vantagens econômicas na reabertura do mercado russo que virá se a guerra acabar. Já seus críticos nos EUA e Europa apenas o veem como manipulável.

O problema se ser a pessoa certa na hora certa do processo histórico é estar à altura dele. Noves foras considerações morais de caráter, Trump realmente parece apenas buscar sua máxima declarada de proclamar vitória a qualquer custo, mesmo na derrota sua ou dos outros.

Independentemente dessas características, o que reforça a visão impessoal da história, uma nova ordem já emerge na Europa e, de lá, tende a reverberar mundo afora.

No mesmo dia em que proclamou um cessar-fogo inexistente, o americano viu a Alemanha aprovar uma mudança tectônica na sua imagem de monólito da austeridade fiscal em favor de se rearmar e animar a economia.

Este é o país que levou, como ator de uma geopolítica em desencanto, o mundo a duas guerras mundiais quando resolveu investir no seu atávico belicismo —uma delas sob o farol aberrante do nazismo.

Que seu rearmamento seja aplaudido de pé por europeus é sinal inequívoco dos novos tempos. A França de outro personagem que adoraria estar nos livros de história, Emmanuel Macron, virou profeta do gasto militar. Bruxelas promete R$ 5 trilhões para defesa nos próximos anos.

Também na terça, a Polônia e os Estados Bálticos, todos com muitos motivos para temer uma Rússia reenergizada pela “pax trumpista”, anunciaram que vão deixar o tratado que baniu as horrendas minas antipessoais para coalhar suas fronteiras com esses armamentos. A Finlândia deve segui-los.

Uma versão báltica da Cortina de Ferro, que até há pouco tempo seria vista como um retrocesso no tabuleiro civilizatório, com efeito foi celebrada pelos membros da Otan.

O próximo capítulo é incerto, podendo ser nos extremos uma paz ditada pela força ou a Terceira Guerra Mundial, ou ainda a mais convencional acomodação. Uma coisa é certa: o anjo da história lido por Walter Benjamin a partir do quadro de Paul Klee, fixa o olhar para o passado, mas é tragado pelo futuro.



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