África do Sul, uma história de resistência

A rica história das lutas do povo da África do Sul tem como marca o papel protagonista do Partido Comunista Sul-Africano na resistência ao apartheid e na construção do Congresso Nacional Africano (CNA), movimento de libertação liderado por Nelson Mandela

José Levino*


O país está situado no sul do Continente que deu origem à humanidade, a nossa mãe África. Repleta de riquezas e belezas naturais, oito vezes menor que o Brasil, a África do Sul tem 60 milhões de habitantes. Destes, 79% são negros, 9,6% são brancos europeus, 8,9% são mestiços e 2,5% são imigrantes asiáticos. Por mais de três séculos, a minoria branca dominou o país onde implantou a segregação racial (apartheid) mais rigorosa do mundo. Mas não dominou por ser branca, e sim, por vir da Europa, continente em que o capitalismo se desenvolveu e para prosseguir no seu crescimento, buscou subjugar os demais povos do mundo.

Há milênios, o Sul da África era habitado por três grupos: o mais antigo, chamado hotentotes ou boxímanos, seguido pelos zulus e xhosas, estes subgrupos da etnia banta. Viviam em regime comunitário, de agricultura, coleta, caça, pesca e criação de animais. Os problemas começaram quando os colonizadores europeus (holandeses) resolveram instalar um posto de reabastecimento no Cabo da Boa Esperança para reabastecer seus navios na rota Europa-Índia-Europa, em 1652.  Os holandeses foram se estabelecendo, ocupando terras, criando gado e chamando a eles mesmos de “africâneres” ou “bôeres”, termo derivado da palavra holandesa boer, que significa fazendeiro. Terminaram escravizando os hotentotes. 

Os ingleses chegaram no ano de 1795. Expulsaram os xhosas e entraram em choque também com os bôeres. Estes abandonaram as terras e se deslocaram para o interior, onde se confrontaram com xhosas e zulus e criaram o Estado do Transvaal. Uma certa coexistência pacífica entre ingleses e holandeses durou até o ano de 1867. Com a descoberta de ouro e diamante na região, as forças britânicas buscaram o seu domínio. Desencadeou-se uma guerra que durou três anos e acabou com a rendição dos bôeres e a assinatura de um acordo no qual eles aceitaram a tutela dos ingleses.

Apartheid substitui o escravismo

Os ingleses aboliram a escravidão, mas criaram um sistema de barreiras rígidas para impedir que os nativos ascendessem econômica, política e socialmente. A segregação racial ou apartheid, como ficou conhecida, foi oficializada em 1910, na primeira Constituição sul-africana. Os negros eram privados do direito de voto, não podiam possuir terras, eram proibidos de circular nos mesmos lugares que os brancos, frequentar a mesma escola, transporte, etc. O Native Labor Act, promulgado após a Constituição, destinou apenas 7% do território nacional aos negros. Eles tiveram de se espremer nos bantustões (Zona Rural) e nos guetos (periferia das cidades). No final dos anos 1920, o desenvolvimento industrial provocou a necessidade de contratar negros, sempre com salários menores que os europeus e os imigrantes asiáticos.

A organização do povo

A organização dos negros sul-africanos começou em 1912, com a fundação do Congresso Nacional Africano (CNA). Seus fundadores, estudantes de escolas missionárias, acreditavam que, organizados, os negros convenceriam a minoria branca dominante a abrir espaço para sua participação na vida política do país, e as mudanças aconteceriam gradativamente. Em vez de diálogo, veio a repressão. A greve de 40 mil mineiros negros, em 1920, foi literalmente massacrada. Em 1921, funda-se o Partido Comunista Sul-africano (PCSA), inicialmente com maioria de operários brancos (imigrantes europeus). O PCSA definiu como estratégia atuar no interior do CNA, na intenção de desenvolver a consciência de classe entre os negros e convencê-los de que a igualdade racial somente seria possível com o socialismo, e se dedicou também à criação de sindicatos.

Foi se fortalecendo uma linha mais combativa. Em 1940, forma-se a Frente Antirracismo, que publicou a Carta da Liberdade, reivindicando o fim do apartheid e a distribuição de terras. Dentro do CNA, criou-se a Liga da Juventude (1943), dirigida por nomes que se tornariam conhecidos em todo o mundo, especialmente Oliver Tambo e Nelson Mandela. Em 1958, surgiu uma dissidência do CNA, por discordar da participação de brancos na Frente Antirracista. Os dissidentes fundaram o Congresso Pan-Africano (CPA), cuja primeira ação de vulto foi uma manifestação contra os limites impostos para circulação dos negros em lugares frequentados pelos brancos. A polícia matou 70 participantes e a repressão se intensificou. Em 1960, as organizações antirracistas foram proibidas.

Luta guerrilheira e luta de massas

Na ilegalidade, o CNA criou seu braço armado, denominado Lança da Nação (Umkhonto WeSizwe). A Luta Armada se deu, numa primeira fase, mediante atentados a prédios públicos, sempre fora do expediente, para evitar mortes, e depois evoluiu para guerrilha rural.

Em 1961, aconteceu a independência da Inglaterra, mas nada mudou na política interna. No final de 1962 e início de 1963, os principais dirigentes do CNA foram presos. No dia do seu julgamento, Mandela pediu para ler uma declaração em vez de responder a perguntas. Nesta declaração, intitulada Estou Preparado para Morrer, afirma: “Tínhamos a tradição da não violência e da negociação para resolver as disputas. Mas todos os meios legais de expressão foram fechados pela legislação. Somente quando o governo recorreu ao uso da força para esmagar a oposição às suas políticas, decidimos responder à violência com violência. Acreditamos que a África do Sul pertence a todos os povos que nela vivem e não a um grupo, seja ele branco ou negro”. Os acusados foram condenados à prisão perpétua.

Apesar do abalo sofrido, a luta armada continuou. Cresceu também a mobilização de massas nos guetos e nos bantustões. O Levante de Soweto (1976), mobilização de jovens, resultou no assassinato de mais de 500 estudantes. No ano seguinte, um dos organizadores, o carismático Steve Biko, de 30 anos, foi preso e torturado até a morte. Ele fundara o Movimento Consciência Negra e é autor da frase utilizada até hoje, “O negro é belo”. Enquanto Nelson Mandela é o grande herói do povo sul-africano, Biko é o seu Mártir.

A ONU recomenda boicote ao comércio com a África do Sul. Porém, a luta armada se fortalece ao ganhar bases de apoio nos países vizinhos recém-libertados do domínio colonial: Angola, Moçambique e Zimbábue. As lutas civis ganharam o reforço do bispo anglicano Desmond Tutu, que foi o primeiro negro a assumir o cargo de Secretário Geral do Conselho de Igrejas da África do Sul.

No dia 11 de fevereiro de 1990, o governo de Frederik de Klerk liberta Nelson Mandela. Começam as negociações para o fim do apartheid e estabelecimento da democracia. As primeiras eleições multirraciais foram realizadas em 27 de abril de 1994. Mandela foi eleito presidente com 62% dos votos.

Governo do CNA

As negociações para o fim da segregação racial chegaram a termo com a garantia da unidade nacional, o chamado arco-íris. O novo regime pôs fim ao apartheid, aprovou uma nova Constituição, estabeleceu eleições livres, adotou políticas públicas destinadas a promover a ascensão e inclusão social dos negros, mas sem alteração do sistema econômico, ou seja, com a manutenção do capitalismo.

Essas políticas criaram uma classe média negra de três milhões de pessoas, mas a concentração de propriedade e riqueza é semelhante à do Brasil, isto é, a propriedade das terras, das indústrias, dos bancos, do grande comércio, permaneceu, predominantemente, nas mãos da burguesia branca que dominou o país por mais de três séculos. Enquanto isso, metade da população não tinha acesso à água, esgoto e energia elétrica e vivia na periferia das grandes cidades e no campo, abaixo da linha da pobreza.

Não poderia ser diferente. Inserido no sistema capitalista, a estrutura econômica não mudou e as normas constitucionais, baseadas nos princípios da igualdade e justiça social, nunca passaram de uma declaração de intenções. Até hoje, crescimento econômico tem como base a exportação de matérias-primas e, para seu abastecimento, o país permanece dependente de produtos do exterior. Sofre apagões constantes e há uma crescente insatisfação popular frente às dificuldades de atendimento às necessidades básicas, bem como das acusações de clientelismo e corrupção, que forçaram a renúncia e posterior condenação do penúltimo presidente, Jacob Zuma, que hoje lidera um partido de oposição, chamado Lança da Nação, que era o nome do setor armado do CNA, do qual ele participou.

Como consequência, nas eleições de 2024, o CNA caiu de 230 para 159 cadeiras no Parlamento. Para manter a presidência (eleição indireta), foi preciso negociar com o principal partido de oposição, dominado pela burguesia branca e chamado Aliança Democrática. Essa aliança tem provocado mais insatisfação popular e despertado tensões raciais.

É mais uma prova concreta, histórica, de que as lutas identitárias, como a antirracista, são muito importantes, mas seus resultados são limitados e podem ser revertidos se não estiverem integrados orgânica, política e ideologicamente com a luta de classes, que visa à criação do Poder Popular, em vista da construção do Socialismo, no qual inexista a exploração de um ser humano por outro e todos possam ter vida digna, e vida em abundância.

*José Levino é historiador

Matéria publicada na edição nº 297 do jornal A Verdade

Adicionar aos favoritos o Link permanente.