Lembrar os 60 anos de Menina que vem de Itatiara é político

Por vários motivos. Primeiro porque esse livro de Lindanor Celina, “Menina que vem de Itaiara” (1963), é uma das melhores representações sobre parte da história e da cultura amazônica, da cidade de Bragança em especial.Segundo porque, salvo engano, os 60 anos de sua publicação, completados em 2023, não mereceu a devida atenção por parte dos atores sociais (sic) e do poder público.Esse livro também tem sua importância por outros motivos. É o primeiro romance de Celina, inaugura a trajetória de seu alter ego Irene e tem a memória como seu principal elemento construtivo.E é exatamente aí que se unem esses dois elementos que, à primeira vista, parecem separados. Memória e política, ou literatura e política.À primeira vista, porque sabemos dessa relação fundamental para o tema literário desde a Grécia antiga quando os aedos (poetas que declamavam as histórias exemplares) serviam como artistas, mas também como educadores.Eles eram os responsáveis por transmitir às novas gerações as narrativas dos feitos exemplares de seus antepassados, formando assim uma cultura e uma imagem de seu próprio povo.

Assim o faz Celina em “Menina que vem de Itaiara”. Ela se utiliza da memória para transfigurar um lugar (Bragança/Itaiara) em suas representações culturais, seus modos de viver e seus personagens exemplares.É como vemos, através de suas páginas, por exemplo, a marujada, uma manifestação cultural que envolve um simbologia múltipla, com procissão, ritual, dança e vestimentas características.E o serra-velho que consistia em várias pessoas irem, munidos de vários instrumentos, à porta da casa de um idoso e ler, em tom jocoso, um tipo de testamento que ele deixaria. Por vezes, o idoso se revoltava e lhes jogava algo não muito agradável.

Essas manifestações, aqui citadas de modo extremamente sintético, estão representadas dentro da narrativa de Celina, não apenas como registro, mas, principalmente, como uma representação do que foi ou poderia ter sido, da história e da cultura.Também Lindanor devota especial atenção aos personagens que caracterizam o lugar. É Irene, sua protagonista, que narra esses verdadeiros heróis e heroínas. É como eles surgem para ela. Heróis e heroínas como Marreca, o caçador e perspicaz rezadeiro, como Mãe Nana, a contadora de histórias e Tia Joana, a inigualável dançarina da marujada.Temos aí não só um quadro representativo de uma vida, mas uma galeria que expõe em alto relevo uma cultua como forma de trazê-la através da literatura, para que ela esteja presente e para que ela lute contra o esquecimento.

Estar presente e lutar contra o esquecimento. Muito já se falou sobre se a arte tem uma função. Se ela tem, aí está uma das suas mais importantes.Exatamente porque a literatura é capaz de dar cores, ritmos, adornos e profundidade, especialmente no livro em questão, que outros meios são incapazes de proporcionar.Relembrar essas formas de representação está longe, sob essa perspectiva, de uma celebração apenas da estética, ou da literatura. Está muito mais próxima de uma atitude necessariamente política de entendermos os lugares em que vivemos, de revivermos a memória como confluência de imagens, tempos e ensinamento.Uma atitude, evidentemente, política no sentido não apenas de visitar o passado, mas fundamentalmente de interpretá-lo, uma possibilidade de compreensão de um ethos (sentido) das sociedades e culturas que faziam e fazem parte de nossas e outras realidades.Uma ideia política que despreze essa possibilidade está distante da tarefa de pensar a cultura, a literatura e a histórica como elementos que compõem a imagem que o homem faz dele mesmo.Está distante da compreensão de que estamos sob os augúrios de Mnemosyne, a deusa da memória. Porque é a deusa quem conduz o aedo (o poeta, o escritor) pelos caminhos entre lembrar e esquecer.Nos 60 anos dessa obra, tive a honra de ter um ensaio (https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/73165/38540) publicado na revista ArtCultura sobre esse livro. E ele traz exatamente esse título, “Sob os augúrios de Mnemosyne: Menina que vem de Itaiara, de Lindanor Celina” (Digo isso menos como autopromoção, e mais como forma do que registro para não esquecermos, nem desse livro, nem dessa literatura).Precisamos, para nós mesmos, para nos darmos sentidos, rememorar através da literatura e, como faz “Menina que vem de Itaiara”, levantarmos contra o esquecimento.Sob pena desse esquecimento ser, por parte daqueles que deveriam enfrentá-lo (atores sociais, poder público), uma atitude não apenas de desatenção, mas de um esquecimento que se tornou naturalizado (quase deliberado) sobre a cultura e a literatura da Amazônia, do País.Devemos pensar se a representação sobre quem somos e onde vivemos não passa decisivamente pela atitude estética, cultural e, nesse caso, fundamentalmente política, de nos lermos nas páginas sempre mais abertas e mais profundas da literatura.De uma literatura como a de Celina e de tantos outros escritores e escritoras amazônidas (a lista seria quase interminável) que precisam ser retirados das águas de “Lethe” , o rio do esquecimento do Hades, o mundo dos mortos.Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. Ufpa  e professor do Centro Universitário Fibra.Contato: [email protected]

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