Produtos naturais nem sempre são melhores que sintéticos – 16/02/2025 – Equilíbrio


Antes de escrever esta reportagem, marquei horário na cabeleireira.

Enquanto ajustava a capa de corte em torno do meu pescoço, ela apontava para o xampu que iria usar. “É uma linha nova, feita com 90% de ingredientes naturais”, explicou ela.

O folheto anexo continha descrições resumidas de cada um dos produtos da linha. Um dos xampus continha extrato de figo-da-índia e outro usava frutos de açaí. Um terceiro incluía sementes de chia.

Assim que entrei em casa, peguei os frascos de xampu que comprei e olhei mais detalhadamente a lista de ingredientes: álcool cetearílico, glicerina, cloreto de behentrimônio e miristato de isopropila. Todos são substâncias comuns feitas em laboratório.

Nenhum desses ingredientes me preocupava. Mas, mesmo sendo empregados em quantidades muito maiores do que qualquer um dos extratos de frutas, nenhum deles é destacado nos anúncios da marca.

A tática empregada – aparentemente com sucesso, no meu caso – existe há séculos. Ela é adotada com frequência nas redes sociais, por marcas e influenciadores, e por políticos de todo o planeta.

O chamado “apelo à natureza”, ou “falácia naturalista”, é um dos tipos mais comumente observados de falácias lógicas – falhas de raciocínio que podem fazer uma afirmação parecer surpreendentemente convincente.

Sempre que você ouvir alguém afirmar que um produto ou prática é superior porque é “natural”, ou que outra é inferior (ou até prejudicial) porque não é “natural”, é porque a falácia naturalista está em andamento.

Dela surgem os argumentos que defendem que determinado produto segue “os padrões da natureza”, ou que outra substância é ruim especificamente porque é “química” ou “sintética”.

A natureza é maravilhosa em muitos aspectos e tem muito a nos ensinar. Mas por que algo não é necessariamente melhor apenas porque vem da natureza?

A resposta é porque a natureza não tem intenções, pelo menos em sentido consciente. Ou seja, ela não tem a intenção de fazer o bem, ou de ajudar os seres humanos, especificamente falando.

Não precisamos filosofar muito para chegar a esta conclusão. Basta considerar algumas das criações da natureza.

O arsênio, por exemplo, é um produto natural que pode matar um ser humano adulto com uma dose de até 70 mg. Outro produto natural é o amianto, que é cancerígeno.

O cianeto pode matar com até 1,5 mg por kg de peso do corpo, se for ingerido. Ele é uma fitotoxina, produzida naturalmente por mais de 2 mil espécies de plantas, incluindo as amêndoas, damascos e pêssegos.

Por isso, alguns remédios “naturais” frequentemente comercializados podem, na verdade, ser perigosos para o consumo, como sementes de damasco moídas.

Esta é a questão do uso da palavra “natural”, tão comum nos anúncios de diversos produtos. Trata-se de um termo mal definido, que não significa necessariamente que o produto será melhor, ou até mais seguro, do que outras opções.

Uma pesquisa sobre produtos para a dentição dos bebês rotulados como “naturais” descobriu, por exemplo, que mais de 370 crianças sofreram efeitos adversos, como convulsões ou delírios. Os produtos continham níveis inconsistentes, às vezes elevados, de beladona.

É claro que também podemos observar fenômenos naturais, além dos ingredientes empregados nos produtos.

A varíola, por exemplo, chegou a matar uma em cada três pessoas infectadas pela doença. Este vírus de ocorrência natural foi responsável pela morte de uma quantidade surpreendente de pessoas – 300 a 500 milhões, somente no século 20 – até que foi erradicado graças à vacinação.

A hera venenosa, a poliomielite, os tornados, as picadas de insetos e a eventual e inevitável morte do Sol que, um dia, irá pôr fim a toda a vida na Terra também são eventos naturais.

No seu ensaio sobre a natureza, de 1874, o filósofo britânico John Stuart Mill (1806-1873) indicou que este é um dos principais problemas dos chamados “apelos à natureza”:

Para ele, “ou será certo matar, porque a natureza mata; torturar, pois a natureza tortura; arruinar e devastar, porque a natureza assim o faz; ou não devemos considerar o que a natureza faz, mas sim fazer aquilo que é bom fazer”.

Em outras palavras, se a premissa do apelo à natureza for correta e tudo o que for “natural” deve ser melhor, apenas porque é natural, precisaremos também estar dispostos a aceitar tudo o que a natureza traz. Caso contrário, provavelmente não acreditamos, na realidade, que tudo é inerentemente melhor quando é natural.

Paralelamente, existem centenas de coisas que podemos considerar não naturais e que, na verdade, melhoraram muito a vida de muitas pessoas.

Antes da medicina moderna, mais de uma a cada 100 mulheres morria ao dar à luz. Atualmente, nos países ricos e industrializados como o Reino Unido, morre uma mulher a cada 10 mil.

Antes da difusão global das vacinas, a coqueluche matava uma a cada 10 crianças infectadas. Depois da vacinação, as mortes caíram para uma fração – mais especificamente, 1/157 – dos números anteriores.

Até aqui, falamos apenas da medicina. Mas basta olhar em volta para observar dezenas de outros exemplos.

Usar óculos, refrigerar os alimentos ou ligar o aquecimento no inverno, por exemplo, podem não ser ações “naturais”. Mas, para muitos de nós, é uma alternativa melhor do que andar por aí sem enxergar direito, deixar a carne estragar ou ter arrepios de frio no inverno.

Grande parte dos alimentos que consumimos não chega até nós na mesma forma em que a natureza os apresenta. Nós os processamos e cozinhamos.

A colheita, moagem e o processamento dos grãos ajudaram na transição que fez com que a nossa espécie deixasse de ser nômade, caçadora e coletora, passando a ser formada por agricultores estabelecidos, capazes de construir sofisticadas civilizações.

O mesmo ocorreu com o nosso cultivo e cruzamento das plantas. Eles fizeram com que muitos dos alimentos nutritivos que consideramos “naturais” hoje em dia, desde a cenoura até a banana moderna, tenham aparência e sabor muito diferentes dos seus antepassagens silvestres.

É claro que não estaria certo sugerir que os produtos fabricados pelo homem não nos causam problemas, como no caso da poluição gerada pelos plásticos sintéticos ou do uso de armas e explosivos. E isso também não significa que, em muitos casos, a opção mais “natural” não possa ser melhor para nós.

Mas o fato é que não podemos considerar que a opção mais “natural” é melhor simplesmente por ser natural, apesar da frequente tendência entre as pessoas de acreditar no contrário.

As cenouras podem ser melhores para nós do que os salgadinhos, mas o paracetamol – sintetizado quimicamente – também é melhor que o arsênio, de ocorrência natural.

Mas o que é natural?

Alguns destes exemplos indicam outro grande problema do “apelo à natureza”. Como determinar o que é natural e o que não é?

Afinal, os seres humanos vêm da natureza. Por isso, se algo produzido por um animal ou planta é “natural”, por que aquilo que os humanos fazem não é?

E como ficam as criações que são misturas do que tradicionalmente chamamos de natural e substâncias ou processos feitos pelo homem? Como ficam as vacinas, que são derivadas de partes de um vírus ou bactéria natural e, quando injetadas, ajudam a ensinar o nosso sistema imunológico a se defender naturalmente do mesmo patógeno no futuro?

“Como todas as palavras realmente interessantes, ‘natureza’ tem inúmeros significados”, escreve a historiadora de ciência Lorraine Daston.

A palavra pode significar quase tudo, dependendo do contexto. E esta difusão de significados é exatamente o que faz dela um termo tão versátil para a publicidade – e explica por que somos tão facilmente convencidos.

Mas existe ainda outro problema. Mesmo se houvesse uma linha divisória clara entre “humano” e “natural”, muitas vezes não sabemos ao certo o que realmente é sintético e o que não é.

Quando escovamos os dentes, por exemplo. É natural escovar os dentes com um creme dental com flúor? Que tal fazer a escovação com um creme sem flúor?

O instinto de muitas pessoas poderá dizer que escovar com flúor não é natural e o creme dental sem flúor é natural.

Mas o fluoreto é um mineral de ocorrência natural. Ele pode ser encontrado no solo, na água e nas rochas. E uma das alternativas comuns dos cremes dentais “naturais” é a nano-hidroxiapatita – um componente sintético.

E precisamos também considerar que a limpeza dos dentes, certamente com os produtos que usamos hoje em dia, está longe de ser natural. O máximo que os outros primatas fazem para escovar seus dentes é passar “fio dental” com o que estiver à mão, como penas de aves.

Mesmo se quiséssemos escovar como faziam nossos ancestrais humanos, precisaríamos esfregar os dentes com galhos, pelos de porcos ou até espinhos de porcos-espinhos.

Outra pergunta: se eu dissesse para você que fiz uma bebida composta por 99% de monóxido de di-hidrogênio, você aceitaria?

O nome químico parece descrever algo bastante sintético, mas basta pensar um pouco nele.

O monóxido de di-hidrogênio, naturalmente, é composto por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Sua fórmula química talvez pareça mais familiar: H2O. Sim, estamos falando da água.

Por tudo isso, na próxima vez em que você observar o anúncio de um produto baseado na sua origem natural (ou alguém atacando algum produto por ser sintético), vale a pena questionar o que aquilo realmente significa.

É possível que seja preciso questionar por que as pessoas responsáveis por aquele produto ou prática estão fazendo uso da falácia do “apelo ao natural” para convencer o público dos seus valores, em vez de simplesmente apresentar os argumentos lógicos que justificam por que aquela é realmente a melhor opção.

*Amanda Ruggeri é jornalista e escritora de ciências premiada. Ela escreve sobre know-how, alfabetização midiática e muito mais na sua conta @mandyruggeri, no Instagram.





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