Para transmissões esportivas modernas, o jogo é um detalhe – 26/02/2025 – Esporte


O maior cronista esportivo de todos os tempos sabia que “a bola é um ínfimo, um ridículo detalhe”. Reacionário –neste caso cheio de razão para reagir–, lutava contra uma crescente vertente da imprensa futebolística, obcecada por esquemas táticos.

“Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem ganha e perde as partidas é a alma”, escreveu, em um de seus célebres textos, na Manchete Esportiva, em 1956.

Nelson Rodrigues não desprezava conceitos táticos. Também não desprezava a bola. Só sabia, com seu olhar de dramaturgo, que um jogo envolve mais do que estratégia. “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.”

Ele podia até simular, para efeito retórico, desdém pela bola. Mas jamais afetava desprezo pelo jogo. Ao contrário. Leia o texto dele sobre um Flamengo x Canto do Rio, de 1957, e você terá a certeza de que a partida foi decidida por um cuspe na bola.

Estamos, claro, falando de um gênio da linguagem. Que era vaidoso e gostava de cravar com um punhal sua assinatura. Mas, por mais Nelson que fosse o texto, cheio de referências pessoais, era sempre sobre o jogo. Sempre!

O jogo não é um detalhe.

Pois, hoje, parece que é.

Até mesmo para a transmissão ao vivo pela televisão. Em um mundo feito de recortes para as redes sociais, o locutor de um jogo não trabalha para satisfazer o espectador aficionado que está, veja só, acompanhando a movimentação dos atletas e preocupado com o resultado.

Esse locutor quer achar um momento para gritar alguma barbaridade –do tipo “eu quero gozar”, exemplo real– ou repetir um bordão. Transmitir, na semântica mais pura da palavra, que deveria ser a base de qualquer comunicador, tornou-se um verbo obsoleto.

A madrugada de quarta-feira (26) teve um jogo importante de basquete, para quem se importa com a modalidade. O placar apontava Los Angeles Lakers 91 x 91 Dallas Mavericks, no quarto e último período, e se desenvolveu uma discussão de minutos entre o narrador e os dois comentaristas sobre temaki.

Temaki, a comida japonesa. Isso.

Àquela altura, cada um do trio já havia entoado ao menos uma canção na transmissão, entre paródias e hits como “Baba, Baby!”.

Já depois do 91 a 91, em momento ainda mais decisivo da partida de basquetebol que insistia em prosseguir, um dos comentaristas começou a descrever a relação que tem com seu psicoterapeuta. A bola estava em jogo.

Há enorme diferença entre tratar o esporte com leveza e tratá-lo com desrespeito. O jogo importa. Nelson, profeta do óbvio, sabia disso.

O radialista Osmar Santos, cuja arma comunicativa sempre foi a palavra falada, não a escrita, também sabia. Era mais um comunicador talentoso, com estilo inconfundível, que não se colocava acima do jogo.

Pergunte a qualquer corinthiano qual é o melhor relato do maior título do Corinthians. Osmar Santos, em 1977, será a resposta correta.

Osmar nunca foi corinthiano. Mas, sem abrir mão de sua assinatura, sabia que era capaz de tocar corações –corinthianos, palmeirenses, são-paulinos– sem temaki.

Só com respeito ao jogo, que não é um detalhe.



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