Ruy Castro: Lambidas literárias – 22/03/2025 – Ruy Castro


Por força das circunstâncias, tive de fazer outro dia uma coisa inédita em 20 anos: ir ao correio postar uma carta. Por falta de prática, só no balcão reparei que o envelope não tinha na dobra aquele fio de cola desidratada que, nos velhos tempos, se lambia para fechá-lo. Vendo minha hesitação, a funcionária compadeceu-se e me indicou um pote de cola ao lado. Valeu —com a ajuda de um pincel, fechei brilhantemente a carta e a apresentei à funcionária, que a passou numa máquina e a despachou para o competente destino.

Nos ditos velhos tempos, a lambida na cola seca era de praxe. Henry Miller e Anaïs Nin, por exemplo, trocaram tantas cartas pornográficas, lembrando seus tempos em Paris nos anos 20, que nem as lambidas no envelope deviam ser inocentes.

Já as entre Clarice Lispector e Fernando Sabino eram totalmente castas. E as de Nelson Rodrigues, do sanatório para tuberculosos em Campos de Jordão, onde ele estava internado em 1938, para sua então noiva Elza, no Rio, eram de uma volúpia poética digna do grande romântico que ele era. Outro correspondente compulsivo foi Otto Lara Resende —cartas longas, minuciosas e com o inevitável brilho ottolariano.

Mas ninguém no Brasil, quiçá no mundo, escreveu tantas cartas quanto Mario de Andrade. Milhares, milhares. A prova está nas dezenas de seus livros de cartas (no mínimo um para cada correspondente!) para Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Alceu Amoroso Lima, Tarsila, Portinari, Sergio Buarque, Murilo Rubião, Rodrigo M.F. de Andrade, o próprio Sabino etc. etc. etc., e para qualquer jovem aspirante a escritor de Arapiraca, Botucatu ou Cascavel que um dia lhe tenha mandado um livro de versos. Menos para Rubem Braga, de quem ele não gostava —e Rubem se orgulhava de ser o único brasileiro que nunca recebera uma carta de Mario de Andrade.

Até aí, tudo bem. Minha preocupação é com os hectolitros de cola que Mario de Andrade engoliu ao lamber aquela tonelada de envelopes. Mas, se foi em nome da literatura, ótimo.


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