Ricardo Araújo Pereira: Pó fanfarrão – 22/03/2025 – Ricardo Araújo Pereira


Tudo é vaidade, diz Eclesiastes assim que começa. E é notável que o pregador que fala nesse

livro da Bíblia tenha feito essa observação há alguns milênios antes do aparecimento do Instagram.

Bem sei: quando ele diz que tudo é vaidade, isso significa que tudo é vão, fútil, efêmero, vapor. Tudo o que valorizamos, a começar por nós mesmos, será um dia, inevitavelmente, pó.

Mas é isso mesmo que a vaidade, no sentido que lhe damos hoje, é: ostentação de coisa nenhuma,

nada sobre nada. Mantendo claro que somos pó adiado, a vaidade é orgulho em ser pó, é pó sendo

fanfarrão sobre ser pó.

Tenho percebido que o Instagram é o espaço por excelência da vaidade. Olhe onde eu estou, veja com quem eu estive, repare no que estou comendo.

Tudo é cuidadosamente fotografado para parecer melhor do que é. Ou seja, pó reenquadrado para

parecer melhor pó. E parece que o pó está perdendo o pudor de se vangloriar.

Podcasts de entrevistas recebem pessoas que ninguém conhece, mas que não resistem a tecer sobre si mesmas os maiores elogios.

Não me interpretem mal: também me aborrece que gente muito conhecida, e até extraordinária, se enalteça. Mas é menos ridículo.

Se Leonardo Da Vinci (que, recordo, neste momento é pó) desse uma entrevista dizendo ser o maior artista de todos os tempos, isso seria menos ridículo, mas igualmente chato.

Tudo bem, Leonardo, já sabemos. Mas quando um estilista desconhecido se apresenta dizendo que, na sua opinião, é a grande figura da moda dos últimos 50 anos, dá vontade de rir.

Sendo o estilista um pobre diabo que ninguém conhece, há quem diga que não podemos rir dele. É “punching down”, ou seja, estamos a escarnecer de um desgraçado.

Mas, se ele próprio considera que é grande, que direito temos nós de o desmentir?

Ele acabou de dizer que é o maior, indicando que para o vermos temos de olhar para cima. É um

caso evidente de “punching up”, isso sim.

E não adianta dizer que ele na verdade é pó. Nós, que rimos, também somos. Mais: o nosso riso é ar. É ainda menos que pó.

A situação é esta: pó ri de pó.

Não se preocupem, que não é grave.


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