A ‘Vitória’ de Fernanda, das Fernandas – 23/03/2025 – Opinião


“Vitória” é o filme em que Fernanda Montenegro dá vida a uma mulher que resolveu filmar de sua janela os horrores das tantas violências. As armas, o tráfico, a corrupção, o descuido com as infâncias, a morte covardemente antecipada, os barulhos que barulham a vida.

No apartamento em Copacabana, de frente para a entrada de uma favela, recolhe cacos de uma xícara como se recolhesse os cacos da humanidade inteira.

Quando Joana da Paz, que no filme é Nina, soube que sua história viraria filme, ela sonhou que a atriz fosse Fernanda Montenegro. A imagem de Dora, escrevedora de cartas em “Central do Brasil”, ainda estava nela. Ainda está em nós. Faz algum tempo, faz tempo nenhum, a atemporalidade da arte.

O filme “Vitória”, dirigido por Andrucha Waddington, cuja ideia inicial foi de Breno Silveira, que faleceu no início das filmagens, é fascinante. A história é contada com uma delicadeza e uma força imensa. E que vigor tem essa mulher aos 95 anos?! Fernanda anda, corre, dança, olha, fala, grita, silencia com a emoção certa. E que emoção levar uma multidão ao parque Ibirapuera, em São Paulo, para ouvir sua extraordinária leitura dramática de um texto denso da densa filósofa Simone de Beauvoir!

Sou fascinado por Simone, mas quem levou a multidão foi Fernanda, que entrou, justificadamente, para o Guiness Book. E que emoção ver sua filha, Fernanda Torres, fazendo o mundo falar sobre o Brasil ao viver Eunice Paiva, a mulher que enfrentou a dor vivendo.

Fernanda é uma outra vitória de Fernanda. Um dia, Clarice Lispector escreveu que havia nascido para três coisas, ser mãe, ser escritora e amar as pessoas. Fernanda nasceu para dar muitas vidas, inclusive para dar vida à Fernanda. E, sobre amar, ninguém faz o que as duas Fernandas fazem sem amor. Fernanda Torres é gigante também no texto, nos livros que escreve. É a mulher de comédias marcantes —como a mãe, aliás. Mas foi na tragédia de uma vida, entre tantas vidas roubadas na ditadura, que surgiu, no filme de Walter Salles, o primeiro Oscar para o país.

O Brasil ficou grande na autoestima coletiva com Fernanda Torres dando entrevistas, em línguas diversas, em diversos países. Com classe, com conteúdo, com a responsabilidade de dizer ao mundo que existimos. Somos fortes culturalmente. Sua voz deu voz a mulheres e homens incríveis, artistas brasileiros, que fazem arte, cotidianamente, com todas as pedras que ferem de dor vidas tão difíceis. A construção da identidade de um país se faz com suas manifestações culturais. Mesmo assim, há incompreensões, há ditos mentirosos, há tentativas de destruições.

As Fernandas são vitoriosas porque são construtoras. São vozes que destravam a timidez, são mãos que se estendem a outras mãos para atuar. São a inspiração de um país que merece ser vitorioso. No filme, que nos rendeu o Oscar, Fernanda é precisa, é preciosa. Seu olhar diante do cachorro morto na rua ou para a mesa ao lado na sorveteria com os filhos. O olhar de Fernanda, a mãe, no final da trama, é um filme inteiro de emoção. Nem uma palavra e todas as palavras do mundo. Que força, meu Deus!

Em “Vitória”, ela é a mulher brasileira que usa roupas surradas, que, apesar de tudo, confia na bondade. Ela desacredita que o menino possa ser bandido. Ela acredita que o que foi lindo possa voltar a ser. Quem sujou a água que abastece o mundo de amor, se na fonte ela é tão limpa?

Fico imaginando as gravações, as horas de filmagens, a convivência com atores mais jovens, todos tão talentosos. Fico imaginando o compartilhar de uma vida inteira, o esforço físico para estar inteira. O filme é inteiro!

A “Vitória” de Fernanda é mais uma vitória em uma vida cheia de vitórias. A vitória das Fernandas é nos abrir o coração e a mente e dizer, com suas vidas, que uma vida vivida à luz de uma vocação, de um chamado, vale a pena.

A vitória das Fernandas é ter encontrado o próprio lugar no mundo e feito desse lugar um mundo inteiro de possibilidades. Não nos esqueçamos de que, mais de uma vez, Fernanda Montenegro foi convidada para ser ministra da Cultura. Delicadamente, ela recusou e explicou que nasceu para o palco, para a arte.

Nasceu Fernanda de Fernanda. Nasceram as duas para nos lembrar que a humanidade é linda. Que o amor ao que fazemos e com quem fazemos nos devolve à nossa essência. Somos de uma natureza boa. Às vezes, nos perdemos. Então, surge uma, duas Fernandas para nos ajudar a nos reencontramos.


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