A Páscoa se aproxima, e na igrejas do Brasil se ouvirá entoar: “Rude cruz se erigiu / dela o dia fugiu / revelando vergonha e pavor”. Em seguida o refrão: “Sim, eu amo a mensagem da cruz…” Mesmo quem não celebra a Páscoa cristã está cercado da carga simbólica e enigmática da cruz: como é que um instrumento de tortura se transformou no maior símbolo de amor e consolo?
O significado mais explícito está na morte cruel e injusta de um inocente, que, sendo Deus, abriu mão desse status e, assumindo forma humana, se entregou por amor para redimir o Cosmos (João 3.16). Esse amor salvador teve efeito imediato: perdão para seus algozes e redenção do ladrão crucificado a seu lado (Mt. 27.38-44).
Até hoje esse salvamento na última hora traz esperança a quem se julga indigno de qualquer misericórdia.
Quando Jesus morre por amor de quem não merece, leva o campo do amor para outro patamar. Como nos informa o filósofo Soren Kierkegaard: “Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido / Tu que revelaste o que é o amor; / Tu, nosso salvador e reconciliador, / que deste a Ti mesmo para libertar a todos!” (“Obras do Amor”, editora Vozes)
Nesse cruzamento de dimensões, o amor redentor de Cristo encontra cargas simbólicas que estão presentes também naqueles que não aderem conscientemente ao cristianismo:
Por exemplo, a cruz é um refúgio arquetípico. Ela remete ao abrigo que nossos ancestrais encontraram no alto das árvores perante feras e catástrofes. O terapeuta e padre Eugen Drewermann (“Religião para Quê?”, editora Sinodal) explica que este forte componente inconsciente faz com que as pessoas coloquem cruzes no alto dos umbrais, igrejas, casas e instituições. A cruz é um madeiro que traz refúgio dos perigos.
A cruz também está impressa na face humana, afirmou Justino Mártir, no século 2º. A linha horizontal dos olhos encontra a linha vertical da testa, nariz e boca. Encontrar uma face em momentos de desespero retira a pessoa da angústia, desde os tempos de bebê.
Contemplar a cruz é encontrar essa face amorosa, nos informa Adélia Prado no seu poema “Presença”: no encantamento da tarde, as cruzes nas cúpulas “são árvores na bruma / à luz reflexa da tarde / o olho de Deus me vê, o olho amoroso dele”.
A cruz ainda é auxílio para superar abusos. É o que expressou minha paciente M., evangélica, ao contar entre lágrimas da violência sexual: “Quando olho para os quadros de Jesus na cruz, despido e sem poder fazer nada, eu me sinto consolada. Ele passou por momentos parecidos com o que eu passei, ele me compreende e me ajuda a superar.”
A cruz é apoio para suportar injustiças. Os torturados pela violência de Estado de todos os tempos e seus familiares encontraram no Crucificado suporte para o injusto sofrimento. Um tema que a esquerda de inspiração marxista ainda não elaborou o suficiente, para integrar a presença de cristãos nos movimentos contra injustiças sociais.
A cruz abraça nossos sofrimentos. Em Isenheim, Alemanha, Mathias Grünewald (1470-1528) pintou Jesus crucificado com o corpo doente: “A mensagem é que Cristo, com o corpo crucificado coberto de feridas como as da peste, compreende a condição dos doentes, sofre por eles e com eles.”
Cruz é amor, refúgio, face, consolo, missão. “Levarei, eu também minha cruz”, continua o hino, integrando o sofrimento individual ao de Cristo. Sabemos dos maus usos “em nome de Deus”, mas isso não lhe tira o significado. Por isso, senhores juízes, caros terapeutas e pastores evangélicos que não gostam de símbolos religiosos: em tempos tão difíceis como os nossos, pensem melhor antes de exigir a retirada da cruz.
E senhores políticos, não abusem desse símbolo para apagar condenações necessárias aqui na terra!