Na mesma semana em que os cristãos se reúnem para relembrar a paixão, morte e ressurreição de Jesus, terreiros de Umbanda e casas de benzedeiras fortalecem rituais ancestrais que resistem ao tempo. Em Goiânia, o Centro Espírita São Miguel Arcanjo, no Setor Universitário, realiza durante toda a Semana Santa o ritual do Fecha Corpo – um ato de proteção espiritual que ganha força especial na Quinta-Feira Santa.
Guiado pela entidade espiritual Pai João, o preparo da bebida sagrada – uma mistura de vinho branco, cachaça e ervas selecionadas – segue um protocolo cuidadoso. “Não se trata apenas de misturar ingredientes. É necessário ter a permissão dos antigos para que o ritual alcance seu verdadeiro propósito: curar, proteger e abrir caminhos”, explica Zelismar Pereira, um dos dirigentes do terreiro. A bebida é distribuída em pequenas doses aos fiéis, como forma de renovar as energias e a fé.
A casa espiritual carrega a herança de Erotildes do Carmo, a Vó Erotildes – benzedeira, médium e descendente de pessoas escravizadas, que chegou a Goiânia nos anos 1950. Conhecida por seus dons de cura, ela começou a atender na própria casa, que mais tarde se transformaria em um dos terreiros mais antigos do estado. “Ela nos ensinou que a força vem da oralidade, do respeito aos mais velhos e da escuta dos guias espirituais”, conta Maria de Lurdes, a Madrinha Ester, que hoje lidera a casa ao lado de Zelismar.
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Mesmo após a morte de Vó Erotildes, há quase dez anos, os rituais, rezas e o uso ritualístico das ervas continuam vivos. “Seguimos porque é um compromisso com quem veio antes de nós. A espiritualidade é quem nos orienta”, reforça Zelismar.
Umbanda: uma fé que acolhe
No altar do terreiro, orixás e santos católicos dividem espaço, revelando o sincretismo religioso que marca a Umbanda – religião brasileira que une elementos de matrizes africanas, indígenas e cristãs. “Aqui não importa a religião de quem chega. O que vale é a necessidade, o que a pessoa carrega no coração”, explica Zelismar.
Sem livros sagrados escritos, a Umbanda sobrevive através da tradição oral, o que representa um desafio num mundo cada vez mais urbano e ainda marcado por preconceitos. No entanto, entre velas acesas e pontos entoados, o ritual do Fecha Corpo se afirma como símbolo de resistência cultural e espiritual.
“Enquanto houver fé e memória, a benzeção continuará viva”, afirma Madrinha Ester. De portas abertas, o Centro São Miguel Arcanjo mantém o legado de acolhimento deixado por Vó Erotildes. “Curar é mais do que usar ervas. É oferecer amor, escuta e respeito à ancestralidade.”