“Eu não acho o livro milagroso. Sou bem descrente dessa ideia de que o livro contém o caminho para um mundo mais igual. São os políticos que podem fazer isso. Mas o livro propicia desenvolvimento de subjetividade —e pessoas com subjetividade e interiores desenvolvidos podem agir para um mundo melhor.”
É assim, num equilíbrio cirúrgico entre o otimismo criativo e o ceticismo sobre o oba-oba motivacional que costuma corroer a literatura infantojuvenil, que Márcia Leite inaugura a sua nova editora: a Joaquina. A casa nasce nesta semana já com seis títulos e previsão de publicar outros cinco ou seis no segundo semestre.
“Tudo ainda está em construção”, afirma a editora e escritora, que era sócia da Pulo do Gato até 2023. “Tive muita dificuldade de escrever o texto de apresentação no nosso site, por exemplo. Como vou falar sobre quem somos, se estamos sendo? Nós não somos, nós estamos.”
Mas, apesar do discurso que ainda evita ser muito concreto, a Joaquina parece ter clareza sobre o que deseja fazer. Basta olhar os primeiros títulos do catálogo para notar que o selo se sustenta em alguns pontos principais. Todas as seis obras inaugurais, que serão lançadas em São Paulo nesta semana, se apoiam firmemente na ilustração, são assinadas por autores brasileiros, podem ser lidas tanto por crianças quanto por adultos e dão uma banana para as diretrizes escolares que enxergam o livro como instrumento catequizador dentro da sala de aula.
Em vez disso, os lançamentos se afirmam como objetos estéticos e narrativos, sem rabo preso com cartilhas pedagógicas. “Não pensamos em contemplar a BNCC”, afirma Leite, citando a Base Nacional Comum Curricular, documento do governo que norteia as escolas do país. “São livros que procuram um estranhamento, um silêncio. Não olhamos os temas, mas a linguagem, a abordagem, a originalidade e a forma com que texto e imagem se comunicam.”
Fazem parte dessa primeira leva a dupla “Mamãe Apaixonada” e “Papai Apaixonado”, de André Neves, e “Ximlóp”, de Gustavo Piqueira, além de três autores estreantes ou ainda pouco publicados pelo circuito: Letícia Graciano, com “O Melhor Dia da Minha Vida”; Fábio Severino, com “Pedro e Paulo”; e Felipe Kehdi, com “Prisma”.
Esses três últimos foram pinçados entre os mais de 40 contemplados na primeira edição do prêmio Filex de ilustração e livro ilustrado, em 2023. “A Márcia usou o catálogo como fonte de pesquisa e diálogo, escolheu alguns projetos e fez um trabalho editorial profundo com eles”, conta a ilustradora e artista plástica Flávia Bomfim, coordenadora do Filex.
A segunda edição do prêmio está com as inscrições abertas até setembro. Um dos vencedores do novo concurso terá seu livro publicado justamente pela Joaquina, enquanto outro entrará no catálogo da Baião, selo infantojuvenil da Todavia.
A nova editora surge cerca de um ano e meio depois que Leite deixou a Pulo do Gato, casa que ajudou a fundar em 2011 e que segue ativa, agora sob a batuta de Leonardo Chianca. Além dela, completam o time da Joaquina suas duas filhas, Mariana e Júlia.
“É uma continuidade, no sentido do desejo de permanecer no mundo do livro. Mas é outra editora. Eu sou mais do escuro, do preto, do pastel. Só que os primeiros livros da Joaquina não são assim. Eles pulsam de cor. Estou sendo desafiada a procurar aquilo que não sou eu”, conta. “Entendo o editor como um diretor de teatro, de cinema, um coreógrafo. Alguém que se pergunta: como posso melhorar isso aqui? Como tiro mais desse ilustrador, desse escritor?”
Mas como manter esse projeto economicamente viável quando o maior comprador de livros no Brasil ainda são os governos? Como fazer livros estranhos se editais exigem critérios pedagógicos? Como apostar no silêncio em meio à crença de que a literatura deve ensinar padrões morais? Como tornar o dissenso possível enquanto a arte ainda é encarada como o terreno do bom e do belo, principalmente para crianças e jovens?
“Não sei responder. Esse é um dilema, um risco e pode ser a pedra do nosso projeto editorial. Minha filha me perguntou se a gente pode falir. Pode, claro”, diz Márcia. “Mas a gente vai contra esse modelo de usar a literatura sempre a serviço de alguma coisa, nunca para a fruição. As leituras que permanecem são as que provocam algum tipo de transformação, não são as burocráticas, as decoradas para a prova, né? Senão acabamos esquecendo, assim como não lembramos mais as fórmulas de química.”
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