No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 35 anos em 2025. Comemorado como marco jurídico da proteção integral, ele assegura a toda criança o direito à convivência familiar, à educação, ao lazer e à dignidade. Mas fora das páginas da lei, há milhares de infâncias que não cabem no discurso institucional. São as infâncias dos outros, as que nascem sem quarto pintado, crescem em abrigos, ocupações urbanas, favelas sitiadas por facções ou nos corredores de presídios, agarradas às mães encarceradas.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, mais de 33 mil crianças vivem em acolhimento institucional. Não foram abandonadas: a maioria foi afastada por ordem judicial, sob a justificativa de risco. Por trás disso, há pobreza extrema, racismo e desestruturação familiar. São crianças criadas por turnos de cuidadores, à espera de adoção que raramente chega. Dois terços delas são negras.
Nas ruas, a infância torna-se invisível. Estimativas indicam mais de 20 mil crianças vivendo em situação de rua. Não há estatísticas oficiais precisas. A cada governo, os rostos se repetem nos semáforos. Algumas vivem com as famílias; outras, sozinhas, fugindo da fome ou da violência doméstica. Dormem em papelões e comem doações. O futuro, nesses casos, é um privilégio incerto.
Em zonas de conflito urbano, brincar é suspenso. Tiros, helicópteros e blindados fazem parte da rotina. A escola fecha durante operações policiais. Crianças aprendem a correr, se esconder, calar. Testemunham mortes, silenciam traumas. Não estão em guerra, mas convivem com seus efeitos. Crescem com medo e pouca assistência. A infância termina cedo.
Outro cenário esquecido: o das crianças nos presídios. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, mais de 1.500 vivem atrás das grades com suas mães. Nascem no cárcere e lá permanecem por meses. Algumas presenciam a humilhação do parto algemado. Crescem entre celas, horários rígidos e afeto vigiado. A institucionalização precoce deixa marcas difíceis de medir.
Em ocupações, a infância é coadjuvante da luta por moradia. Crianças presenciam despejos, veem brinquedos destruídos, mudam-se de madrugada. Em abrigos improvisados, a alimentação depende de cestas básicas. A escola se torna centro de apoio emergencial. O tempo da infância é atravessado por incertezas.
Essas infâncias não são exceções, são a face visível de um país onde a cidadania chega tarde, ou não chega. Crescem nas brechas de um Estado ausente, entre leis que existem no papel e políticas que não sobrevivem ao calendário eleitoral. Celebrar o ECA sem enfrentar essa realidade é manter a ilusão de que o direito basta. Para milhares de crianças, a infância não é abrigo: é travessia entre abandono e resistência.