Como Erdogan colocou a Turquia na rota do autoritarismo


Para especialistas, a Turquia há muitos anos caminha rumo à autocracia. Depois que sobreviveu à tentativa de golpe de 2016, Erdogan ampliou seu poder no comando do Executivo e apertou o cerco contra rivais e dissidentes políticos.

Com a prisão de Imamoglu, o político que chegou à Presidência como reformista teria dado agora mais um “passo rumo ao autoritarismo total”, na avaliação da pesquisadora Hürcan Asli Aksoy, da fundação alemã SWP, em entrevista ao portal Tagesschau. O que explica essa trajetória?

Início da carreira política

Nascido em 1954 como filho de um guarda costeiro, Erdogan cresceu em Kasimpasa, bairro humilde de Istambul predominantemente habitado por muçulmanos praticantes. Durante a juventude, trabalhou como feirante, vendendo limonada e pães de gergelim para ajudar a família a pagar as contas.

Por obra do pai, foi parar em uma escola religiosa, onde teve aulas de retórica e se destacou por sua eloquência. Seu apelido na época, segundo a imprensa turca, era “rouxinol do Alcorão”.

Em 1978, casou-se com Emine, com quem teve quatro filhos. Mais tarde, em 1981, concluiu os estudos na Universidade Marmara, em Istambul. A instituição, porém, afirma em seu site só ter virado universidade em julho de 1982. Por causa disso, há muitos anos se debate se o político tem ou não um diploma de ensino superior – requisito obrigatório para o exercício da Presidência.

Depois dos estudos, Erdogan foi trabalhar na empresa de transporte municipal de Istambul e, paralelo a isso, atuou como jogador semiprofissional de futebol.

Sua carreira política começou na década de 1970, quando ele se juntou a um partido conservador e religioso liderado pelo islamista Necmettin Erbakan. Em 1994, numa vitória surpreendente, foi eleito prefeito de Istambul, apesar de até então ser relativamente desconhecido.

O divisor de águas em sua carreira política veio em 1998, quando ele foi condenado à prisão e precisou abdicar da prefeitura por causa de um poema considerado à época incitação ao ódio religioso.

Fundação da AKP

Em 2001, Erdogan fundou, junto com outros políticos, o Partido para Justiça e Desenvolvimento (AKP), de orientação conservadora e populista de direita.

No ano seguinte, a sigla novata obteve 35% dos votos. O resultado teria qualificado Erdogan para o posto de primeiro-ministro – não fosse a condenação. Ele acabou assumindo o cargo em 2003, após uma mudança nas leis, e se reelegeu mais duas vezes.

Durante seu mandato, Erdogan impulsionou o crescimento econômico da Turquia e chegou até mesmo a ser elogiado como reformista.

Em 2005, começaram as negociações oficiais para a admissão da Turquia na União Europeia. O processo impulsionou a modernização do ordenamento jurídico do país em um ritmo inédito. Erdogan fomentou o desenvolvimento da infraestrutura, e a classe média cresceu.

Mas a maré virou em 2013, com os protestos no Parque Gezi. O que começou como uma pequena manifestação contra um projeto de construção em Istambul logo se transformou em um movimento contra a política autoritária de Erdogan e as crescentes restrições à liberdade de expressão.

O governo reagiu com gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha. Oito pessoas morreram e milhares ficaram feridas. Erdogan classificou os protestos como uma “tentativa de golpe” e fez deles uma oportunidade para consolidar seu poder.

Alinhamento à comunidade religiosa

Em seus mais de 20 de poder, Erdogan apoiou a parcela da sociedade turca mais apegada à religião. Uma de suas vitórias foi desfazer a proibição do uso do véu islâmico (hijab) em prédios e repartições públicas. Sua esposa, Emine, sempre o usa; as filhas do casal estudaram nos Estados Unidos para que não precisassem deixar de cobrir a cabeça.

“Sou um pai em sofrimento. Minhas duas filhas estudam em universidades no exterior por causa disso, porque não podem fazer isso [usar o hijab] na Turquia, se quiserem observar sua fé”, disse Erdogan em 2004 ao canal francês LCI.

Em 2008, o governo dele conseguiu liberar o uso do hijab em universidades, escolas, no serviço público, no Parlamento e na polícia.

Erdogan também defende uma concepção conservadora de família. Para ele, a mulher é “acima de tudo, uma mãe”. “Tragam pelo menos três crianças ao mundo” é um mantra antigo do político.

Como Erdogan expande seu poder

Desde 2014, Erdogan é presidente da Turquia e tem se empenhado em obter ainda mais poder. Uma de suas principais iniciativas neste sentido foi a introdução, em 2018, de um sistema que ampliou seus poderes de presidente e acabou com o cargo de primeiro-ministro. Desde então, cabe ao presidente – cuja função antes era mais representativa – chefiar o Executivo.

Outra mudança foi a restrição drástica da liberdade de imprensa: veículos independentes foram fechados ou submetidos ao controle estatal, o trabalho de jornalistas críticos ao governo foi se tornando cada vez mais difícil – os que insistem estão expostos a intimidações e até mesmo à prisão. Nessa onda recente de protestos, ao menos 11 profissionais foram detidos.

Pressão sob a Justiça

Paralelo a isso crescem também as prisões de oposicionistas. Após a tentativa de golpe fracassada de 2016, milhares de adversários políticos e intelectuais foram detidos, a maioria acusada de apoiar organizações terroristas.

Naquele ano, na noite de 15 para 16 de julho, parte dos militares turcos tentou destituir violentamente Erdogan. O governo atribuiu a iniciativa principalmente a apoiadores de Fethullah Gülen, teólogo turco exilado nos Estados Unidos e que faleceu em 2024. Milhares de servidores, juízes e procuradores foram demitidos desde então.

Ainda não se sabe como a prisão do prefeito de Istambul afetará Erdogan. Para a pesquisadora Hürcan Asli Aksoy, da fundação SWP, a lógica de Erdogan parece promissora: “Não necessariamente porque a abordagem dele agrada aos eleitores, mas porque ele pode contar com todo o sistema estatal, que inclui não só o aparato político, mas também o Judiciário.”

Autor: Stephanie Höppner



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